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De novo entreajuda e capital social; as trocas: «a minha jaca», azeite natural da minha mãe, Compal maçã do Intermar

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.12. De novo entreajuda e capital social; as trocas: «a minha jaca», azeite natural da minha mãe, Compal maçã do Intermar

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Provavelmente terá sido envenenada. Rosa e os filhos queriam ter feito autópsia mas não o fizeram por ser extremamente dispendioso. Todos choraram a cadela, considerada da família.

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Rosa tomou, ocasionalmente, conta dos filhos de Maria, dois rapazes pequenos, e desempenhou essa tarefa a tempo inteiro em 2010, porque Joelma, a avó materna das crianças, viajou para Cabo Verde, «a sua terra» que não visitava desde os anos 50, e na qual permaneceu um ano. Joelma voltou a cuidar dos netos em 2011. Em 2012, no período em que vivi com Maria, essa tarefa passou a ser desempenhada pela sua sobrinha Joana, menina que veio «da roça», como dizia Maria, tema a que voltarei noutro capítulo dedicado ao tempo em que residi com as mesmas.

Maria ajudou a cuidar de uma tia materna de Rosa, em grande parte devido à profissão privilegiada que exercia há cerca de 5 anos. Maria apoiou Rosa aquando das mortes do seu marido e da sua mãe, a quem Rosa assistiu e cuidou em sua casa, em situação de doença prolongada. Rosa recebeu Maria nos meses muitos atribulados103 do seu divórcio e por diversas vezes as ouvi partilhar opiniões consensuais sobre «a bandidagem dos homens são- tomenses», unindo-se enquanto mulheres. Arlindo orientou as obras de finalização da construção da casa de Maria, apoiou a construção da futura casa de Josefina – que até hoje continua em construção – uma vivenda enorme num dos bairros mais conceituados da capital, e que é precisamente ao lado da sua, outra enorme vivenda. Arlindo tinha ainda apoiado esta família em inúmeras ocasiões e em coisas tão simples mas tão simbólicas, como demonstro ao longo do texto, tais como o ato de trazer fruta e legumes frescos das roças que visitava durante o dia, devido ao seu trabalho, e que conhecia «como as palmas da mão», como referiu; ou produtos da horta da sua mãe, que trabalhava no campo. Lembremo-nos que Arlindo passou parte da sua infância em roças, pois o seu pai foi feitor. Arlindo é ainda padrinho do filho mais novo de Maria, e Josefina será sua futura vizinha. Todos ajudaram Rosa, dando-lhe apoio moral, em alturas mais complicadas, como nas mortes referidas acima, e esta retribuía, quotidianamente. Tal como Arlindo, também José trazia, ocasionalmente, frutas da dependência da roça onde nasceu e cresceu, e onde voltou a trabalhar com mais intensidade e a tempo inteiro em 2014, num lote de terra que conseguiu obter antes de migrar para a cidade. Como já foi dito, nesse ano, tinha perdido o emprego na cidade, na ONG francesa, e não teve direito a qualquer subsídio de desemprego, pelo que se voltou de novo para a terra, trabalhando-a para subsistir e para poder alimentar-se e às suas duas filhas, com quem estava

aos fins-de-semana.104.Como já se disse, José vivia na sua «casa de campo», ainda em

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Maria foi vítima de violência doméstica continuada.

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construção, com dois sobrinhos, que o estavam a ajudar a concluir a casa.

Arlindo e José, contribuíam deste modo para os almoços e jantares partilhados, cozinhados por Rosa no seu quintal. Também eu levava sempre algo, apesar de Rosa me dizer para não me preocupar com isso.

Jaf: «O que quer que leve Dona Rosa?» perguntava habitualmente.

«Nada […]» respondia Rosa, num ritual rotineiro.

Acabei por levar quase sempre um sumo Compal de maçã, comprado no Intermar, mercearia de portugueses a residirem nas ilhas, muito apreciada por quem aí pode fazer compras, pois é tudo muito caro, por se venderem sobretudo produtos importados. Levei quase sempre este produto, desde 2012, após consultar a sua filha, que me informou ser o sumo preferido da sua mãe, satisfação que pude confirmar pois Rosa mostrou-se sempre muito contente sempre que o ofereci.

Recordo um episódio exemplificativo deste processo de trocas. Em Janeiro de 2014, encontrámo-nos todos – as visitas regulares – ao portão do quintal de Rosa, cada um com a sua oferenda, para mais um almoço partilhado: «Hoje em casa de Rosa, José também está, para o almoço. Chega na sua moto todo-o-terreno, com a qual ficou do seu trabalho enquanto técnico de campo, com uma jaca gigante às costas, que retirou da mochila. Encontrámo-nos todos ao portão: eu com um Compal de maçã do Intermar na mala, José com uma jaca, Arlindo com azeite «natural» que trouxe da sua mãe. José disse, muito contente: ´Dona Rosa, eu só consegui trazer duas, com a mota só consigo trazer duas [jacas]. Isto é rebuçado gigante, trouxe rebuçado! É xuxa! Isto é muito bom mesmo, xuxa que não dá vontade de parar de comer! É minha jaca!`, diz orgulhoso e satisfeito. Toda a gente se riu» (excerto de diário de campo, encontro ao portão de Rosa, para o almoço, Fevereiro de 2014).

É de extrema importância para José poder oferecer a Rosa «a sua jaca», um símbolo da sua autonomia e do seu percurso, sendo muito importante a atividade de plantar no seu próprio lote, de onde pode retirar produtos quer para o seu consumo quer para oferecer. José planta tudo «sem químicos», «tudo natural», uma prática que ultrapassa contextos105 e que aprofundarei no

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Em 2014, quando regressei a Lisboa, tive uma forte sensação de se «repetirem mundos. Escrevi: «Os ´ produtos da terra` são também uma marca muito importante no dia-a-dia da Europa, como em São Tomé e Príncipe. Cheguei a Lisboa, fui ao Continente e estava lançada uma marca de iogurtes líquidos de ananás da Madeira e de maçã de Alcobaça. Liguei o facebook e saltou-me à vista a moda ´do sem químicos e dos produtos da terra`, dos produtos biológicos, os movimentos dos novos rurais, uma série de questões que me chamaram a atenção precisamente em São Tomé» (excerto do diário de campo, junho de 2014). Leia-se a propósito dos processos de ruralização, os trabalhos de José Manuel Sobral (ex.1993, 2004a; 2004b), Leal (ex.2007a), de Vera Marques Alves (ex.2007), de Luís Silva (ex.2008), entre tantos outros. Consulte-se, por exemplo, a compilação de artigos reunidos na revista Etnográfica sob o tema «Usos da ruralidade», dossier organizado por João Leal em

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capítulo sobre o percurso de José. Como já referi, José trabalhava numa ONG internacional em projectos de desenvolvimento das áreas rurais associados a «processos políticos de matriz global e territorial» que envolvam as comunidades locais num suposto modo de vida «sustentável, apostando[-se] na sensibilização ambiental e ecológica» (Luís Silva, 2008:9). Este é um contexto ideológico global, no qual se atenta na fabricação dos produtos considerados endógenos, autênticos, puros, típicos, apostando-se na patrimonialização dos mesmos (cf. Silva, 2008:10; Sobral 2004:244; 267-268 ), dinâmicas que envolvem agentes ao nível local, regional, nacional e transnacional (cf. Sobral, 2004:244).106

Escrevi: «a minha jaca, a minha galinha, os meus ovos» semelhante a frases como «a minha jinginha, o meu vinho, das minhas vinhas, as batatas da terra, da minha terra», ouvidas noutros contextos. Recordei-me do Sr. Jaime, migrante em Lisboa, de origens humildes, e que mantinha uma forte ligação à sua terra de origem, uma pequena aldeia onde conseguiu construir uma boa casa num terreno onde faz questão de continuar a plantar as suas batatas – bem como o seu próprio vinho. Relembrei o gosto que tinha em cavar as suas batatas e de produzir o seu próprio vinho, como se fosse uma questão de honra, de autonomia, de dignidade. Recordei-me ainda da importância que o Jaime e toda a família davam aos produtos da sua terra: as azeitonas e o azeite, as cerejas, o marmelo e a marmelada, veículos de religação. Nas ilhas como noutros contextos, o ter-se a própria terra e o que desta se retira, contribuiria para processos de criação de perceção de alguma autonomia, o que teria contornos ainda mais reforçados nas ilhas atlânticas, por se tratar de um contexto que sofreu um processo de colonização e escravatura.

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