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CAPÍTULO 2 «SÃO TOMÉ EM MIM É COMO SANGRAR CLOROFILA» E OUTROS REGISTOS DOS DIÁRIOS DE CAMPO

2.8. Madrugada de 13 de março de

«Naquele momento, eu era um corpo no meio da estrada. Mas isso era um pormenor: revi o dia, revi sobretudo a viagem de moto no mato escuro, desde a roça Mendes da Silva, passando por Castelo - onde José cortejou à moda antiga a sua amada - até ali, à beira do museu. Ao viajar no mato escuro (escuríssimo), de moto, e ultrapassando buracos e pedregulhos, sob um luar imenso e amarelo, que só se via às vezes, tudo me parecia possível. As sombras, os cheiros, o mar, o alto mar onde me imaginava sempre que a moto saltava. Era um sentimento muito forte, ao nível de perceção e da contemplação estética, e ao nível do «bora lá vencer medos» […] até porque não sou fã de motos. Era um sentir-me acolhida pela ilha, não sei dizê-lo de outro modo. Dizia para mim mesma «é mesmo aqui que quero estar, onde estou e como estou». Sentia-me estonteada, quente e grata. Por momentos, senti uma leve culpa por me sentir tão feliz. Ainda no chão, ao rever e reviver a felicidade sentida minutos antes, desconfiei da existência de espíritos castigadores e invejosos, como costumam crer nas ilhas. «Será feitiço?» pensei. «Deixa isso para lá», decidi e resolvi voltar a colocar só um auscultador no ouvido. Ainda cantava o Sting. O Sting nunca me abandona […]. A minha queda deu-se tão lentamente e com tanta suavidade que parecia algo mágico. Tive automaticamente a certeza de que ia ficar bem, nunca duvidei. Por isso, sorri e mantive esse sorriso durante um bom bocado de tempo, o que muito surpreendeu a Neusa […]».

Pina-Cabral escreveu sobre o entusiasmo de Valverde, nas ilhas verdes: «Por um lado, há a memória da felicidade total, da fuga encantada […]. O que há de belo e de ambíguo nas memórias de uma fuga que, mesmo que falhe no fim, ficará para sempre como realização, porque foi profundamente vivida» (cf.2000:xv). Este antropólogo escreveu sobre a sensação de libertação sentida em São Tomé, e mesmo ao «reencantamento com o mundo (ibid::xxii), que

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não foi muito diferente do que senti.

Voltemos a casa de Rosa. No que diz respeito ao trabalho de campo, este mês e meio de recuperação, permitiu-me criar laços de confiança e estima para a vida. Tive acesso a uma série de conversas, crenças, práticas, que de outro modo, não teria […]. Nesse ano, José, nunca mais quis ir comigo às roças. Ele acreditava, bem como Rosa e toda a família, que nós os dois não poderíamos andar juntos, pois estava provado que dava mau resultado. Seria preciso respeitar o que o universo nos diz. Já em 2014, quando voltei com José às roças, logo no segundo dia de visitas, tivemos mais um percalço: uma intoxicação alimentar severa (a única que tive com esta gravidade), que nos deixou a ambos de cama mais de uma semana. Mais uma vez, foi Rosa que nos ajudou. Estava definitivamente «provado» que não deveríamos estar juntos, sobretudo fora da casa de R, que me chamou, subtilmente mas com gravidade, a atenção. A. nunca mais arriscou andar comigo de moto ou «fora di zona» e eu também não insisti, respeitando a crença de todos. Valverde dirá numa carta a Quintais, que acreditar no feitiço «tem pouco a ver com regimes de verdade ou mentira […] é mais, ou também, um estado de espirito». Não poderia estar mais de acordo. E acrescentaria: antes de compreender, sente-se. O «gesto etnográfico» definido por Pina-Cabral seria tanto físico quanto intelectual, o que levaria […] o cientista social a descontextualizar-se socialmente para poder re-contextualizar-se no ´terreno` […]» (2007:191-192). E acrescenta: «O processo assim iniciado, não teria qualquer possibilidade de sucesso se não fossem dois outros fatores comuns: (i) um mundo experiencial comum (e por isso mesmo Evans-Pritchard enfatizava que era necessário fazer as coisas que os etnografados faziam; não bastava ouvi-los falar – ver 1976); (ii) as bases comuns da racionalidade – como insiste o filósofo Davidson, ´quando o que é estudado é o mental, então as normas da coisa observada também entram [em conta]. Quando o pensamento toma o pensamento como assunto, o observador só pode identificar o que está a estudar se o considerar racional – isto é, em consonância com os seus próprios padrões de racionalidade`» (2004:98 In ibid:209).

Em Janeiro de 2014 regressei a São Tomé, para continuar a pesquisa para o Doutoramento. Antes mesmo de ir para o aeroporto, publiquei no facebook, o meu «estado de espírito»:

«Caríssimos, não se espantem de me ouvir dizer/escrever ´Se Deus quiser, Só com Cristo, É a vontade de Deus` e afins. Não se espantem se falar com as flores e pedir licença ao mar quando entrar. Posso mesmo vir a postar cenas metafísico-religiosas e não conseguir encontrar explicações racionais para muitas coisas que aqui me acontecem. Já o ano passado foi assim, e este ano sinto ainda mais intenso. É possível que venha a ser deserdada (estou a brincar), mas é

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assim: aqui o meu lado espiritual fica hiperbólico» (status de 10 de Janeiro de 2014).

Valverde escreveu «[…] mas se eu entro neste jogo, mesmo com um grão de ironia, recebo também uma tranquilidade inesperada, a de as coisas estranhas deste mundo se tornarem inteligíveis […]. Se um indivíduo admite a possibilidade da feitiçaria, e de as aparências sensoriais ocultarem mais do que revelam, o mundo torna-se reencantado […]. Será a cafrealização que me toma» (Carta a Luís Quintais, 22 Junho 1998, 2000: XXII). Pina-Cabral dirá que «a referência irónica» de Valverde à cafrealização «mostra bem que Paulo estava consciente de que esta solução para a confrontação de diferentes mundos conceptuais tem sempre algo de não definitivo» (2000:XXII). Não terei tanta certeza.

Fig.6.1 «Aterragem no aeroporto Internacional de São Tomé e Príncipe». Janeiro de 2014.

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