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Na sala de espera para o embarque: onde me sento? There’s an elephant in the room

CAPÍTULO 2 «SÃO TOMÉ EM MIM É COMO SANGRAR CLOROFILA» E OUTROS REGISTOS DOS DIÁRIOS DE CAMPO

2.9. Na sala de espera para o embarque: onde me sento? There’s an elephant in the room

Na sala de embarque do aeroporto internacional de Lisboa, na madrugada do embarque em

2014, deparei-me com algumas das angústias de campo. De um lado da sala, estavam sentados são-tomenses, do outro lado «os portugueses do costume», residentes nas ilhas, e que tinham

vindo a Portugal nas férias de Natal. Deparei-me assim, com alguma da tensão57 latente,

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Em 2014 acabei por observar estas dinâmicas e cheguei mesmo a realizar um inquérito sobre estas questões e que apliquei a diversas pessoas, sobretudo a são-tomenses que negaram, em inquérito, esta tensão. Impõe-se uma

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espacialmente representada, entre são-tomenses e portugueses58e que sempre senti existir desde

o primeiro dia em que pisei o arquipélago, em 2002, tendo observado vários episódios que o atestam.

Ao entrar na sala de embarque, questionei-me: «sento-me onde?». Momentos antes, quando estava prestes a iniciar o check-in, encontrei A., portuguesa e que trabalhou vários anos em São Tomé. Esta trazia consigo lembranças para eu entregar a algumas pessoas em São Tomé. Curiosamente, alguns destes presentes são bombons de chocolate (oferta que eu própria farei a pedido de Rosa, a dona da casa onde vivi), o que não deixa de ser irónico, devido ao fato de São Tomé ter desde sempre ter sido associado ao cacau.59 A. observou a minha bagagem tendo ficado perplexa por eu não ter colocado um cadeado na mala e por nem sequer a ter «embrulhado em plástico celofane», disse-me. Expliquei-lhe que tal coisa não me passara pela cabeça, que nunca o tinha feito e que nunca tinha tido qualquer problema, ao que esta retorquiu: «até ao dia! Eles mexem, eles, eles, eles eles». Pensei, mais tarde, como a sua postura de eterna desconfiança, tão comum entre os portugueses residentes, enuncia e a anuncia parte da tensão e da divisão observada na sala de embarque, e que é representativa da tensão existente nas ilhas. Esta mesma amiga aconselhara-me, umas semanas antes, a ter «uma casa com guarda ou segurança», uma vez que em 2014 ficarei a viver sozinha na cidade.60 Na sala de espera para o embarque, a divisão é nítida. Acabei por me sentar numas cadeiras vazias, ao fundo.

2.9.1 O género, outro elefante na sala: que mulher é esta?

Passado um pouco, iniciei conversa com dois homens são-tomenses, que rapidamente me colaram o rótulo de «turista», o que só por si lhes suscitou um interesse exagerado. Quiseram logo saber onde ficaria a residir e qual o meu número de telefone nas ilhas. Mexi num qualquer anel no dedo e que usei apenas na primeira semana, pois este rapidamente virou ferrugem. De resto, nunca fui capaz de mentir quanto ao meu estado civil ao contrário do que me foi aconselhado, trocando apenas informações verídicas: se me entregavam verdade, se gostaria que me entregassem verdade, não poderia nunca devolver mentira. Expliquei-lhes o meu

análise aprofundada de todas as entrevistas, o que farei já noutro lugar.

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Várias vezes pensei em como espanhóis ou mesmo franceses residentes nas ilhas, terão de algum modo relações menos «marcadas» até porque não representam a antiga potência colonial.

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O chocolate que se fabrica em São Tomé, é inacessível para a maioria das pessoas, devido ao seu preço. Porém, São Tomé continua em parte a ser associado ao cacau, nomeadamente ao nível internacional.

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Em 2014, não fiquei a residir com famílias são-tomenses, pois aluguei um pequeno estúdio no centro da cidade capital, onde pude ter acesso à internet (limitado, é certo) e onde pude começar a escrever a tese com maior regularidade e concentração.

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trabalho nas ilhas, nas roças, nos quintais, a minha vivência com famílias, pelo que rapidamente perdi valor e interesse: «ah, então já conhece…», referiram desiludidos. Se por um lado, me passaram a olhar com mais respeito, por outro lado, com muito menos curiosidade e entusiasmo. Já não «estava» tão mulher sozinha nos trópicos, perante os seus olhos. Apostei na extrema boa educação, o que de algum modo me assegura alguma distância quando me sinto «invadida», e relembrei-me como tantas vezes em campo tive e terei de mostrar ser «recatada», como é valorizado nas ilhas e não só. Momento antes, quando entrei na sala de embarque, revi os olhares dos portugueses (homens) sobre mim, e rapidamente se reavivaram as representações61 sentidas diversas vezes em 2012 e 2004: «ela dá-se muito com ´pretos`, o que ela quer sei eu!».

Assumi mais uma vez, e ainda a partir da sala de embarque, a identidade de profissional, identidade reforçada, de antropóloga sozinha nos trópicos, o papel de mulher decidida e focada, «quase militar», como dirá Gustavo, um amigo são-tomense. Cheirei aquela solidão, aquela que se sente muitas vezes em campo: sentia-a chegar. Esperei a entrada no avião, enquanto rabiscava gatafunhos num caderno branco, com a mesma técnica de desenho à vista que me ensinaram em 2002, precisamente na minha primeira ida a São Tomé. E assim permaneci, a fingir-me desenhadora, num corredor de cadeiras vazias, com um qualquer anel no dedo, a sentir vários constrangimentos, sobretudo de género. Reparei que os meus músculos enrijeceram, e percebi que a solidão que cheirei, se relacionava com o sentir – momentaneamente - não pertencer, mas também talvez relacionados com outros percalços de 2012. Afinal, em campo, não se usa capacete. Á chegada, ao sair do avião, senti o sopro húmido na pele, o cheiro a verde, e o corpo pedia tréguas: tudo se redimensionou é certo, porém continuei ansiosa apesar dos músculos estarem rijos e atentos, hiper-vigilantes desde a sala de embarque, lutando por licença para esmorecer. Saí do aeroporto e fui ter com a «minha família» são-tomense, ao quintal de Rosa: «Ok, aqui já pertenço!», senti, e o meu corpo pôde finalmente descansar, ao reconhecer um seu lugar.

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