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Observo, como referi desde o início, categorias étnicas em São Tomé e Príncipe, no seguimento do que encontrei em campo. Tendo já explicado parte da minha postura teórica, irei clarificá-la.

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Como afirmei atrás, tenho vindo a investigar as dinâmicas da etnicidade, interstícios e ambiguidades, múltiplas pertenças (que mudam em situação e ao longo da vida de um sujeito), bem como reforços e processos de etnicização, no presente e em diversos momentos históricos. Estudo, no fundo, os processos nos quais as pessoas se agrupam e os processos nos quais as pessoas se desagrupam, tentando obter outros estatutos. É neste sentido que o livro de Brubaker Ethnicity Without Groups (2004) me parece relevante para a minha análise, uma vez que este propõe precisamente o estudo dos processos de formação de grupos – o grupismo ou groupness – em vez de se olhar apenas «os grupos em si». O grupismo surge como uma variável, uma contingência, e não é «fixed or given» (2004:12), sendo assim uma reivindicação de pessoas que se agrupam por vezes com propósitos comuns. A este autor interessa-lhe sobretudo entender a variabilidade do grupismo ao longo do tempo, de forma a apreender diferentes momentos, fases e graus de solidariedade e coesão intensa, bem como o seu oposto (ibid). A existência de grupos delimitados – e solidários – seria uma modalidade de etnicidade e mais genericamente, da organização social (ibid.:3-4). Como vimos acima, com a diferença cultural, os grupos seriam efeitos – e não causas – da crença e aposta na diferenciação. Como refere Brubaker «ethnicity does not requires groupness» (ibid.:4), do mesmo modo que o estudo de conflitos étnicos não diria, necessariamente, respeito a «grupos étnicos». Também para Harrison, a argumentação de diferenças, mesmo em conflitos, teria na sua base a similitude e a proximidade, que é no seu entender um fator chave para a criação de antagonismos (2007:9): «We do not hear of ethnic conflicts in which a key issue for the antagonists is that they conceive themselves to be too similar, even though – as I shall argue in this book – this can in fact be a key issue […]. Dissimilarities are often overdrawn by social actors themselves, and in many cases these assertions of difference seem to conceal or deny very real commonalities» (ibid:9-10) (itálicos meus).

A distinção consistente entre grupos e categorias, permite-nos problematizar – e não pressupor – a relação entre estes. Para Brubaker, há uma diferença importante entre grupos e categorias, dois conceitos frequentemente confundidos: «It should be clear that a category is not a group. It is at best a potential basis for group formation or ´groupness`» (2004:12). Um grupo seria «a mutually interacting, mutually recognizing, mutually oriented, effectively communicating, bounded collectivity with a sense of solidarity, corporate identity, and capacity for concerted action […]» (ibid). Brubaker critica a tendência para se analisar os grupos étnicos e as nações como entidades «substanciais, com interesses e agência» (ibid:8), representando-se o mundo social e cultural como um mosaico constituído por blocos (étnicos, culturais, «raciais»), no mesmo sentido em que critica a tendência para se reificarem grupos como se fossem unidades

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internamente homogéneas ou mesmo atores coletivos com propósitos comuns. Destaca, enquanto alternativas a essa tendência o pós-modernismo e as teorias como «a network theory, agent-based theory e as análises densely relational micro- interactionist approaches» como a etnometodologia (ibid.).

Os conceitos de «etnicidade, raça e nação» devem ser pensados não enquanto substâncias, entidades, organismos ou coletivos de indivíduos, nem como grupos homogéneos com fronteiras definidas, mas sim como sendo fenómenos relacionais e processuais, pelo que pensar a etnicidade implica pensar em «etnicização, racialização e nacionalização como processos sociais, culturais, psicológicos e políticos» (ibid.:11).

Para este autor impõe-se um modo de análise desagregada, que consiste na análise do relacional, do processual e da dinâmica (ibid.:2). Proponho chamar a este modo de análise de desapego do olhar, ao colocar-se o foco nos movimentos entre fronteiras. Brubaker analisa a etnicidade sem a circunscrever à análise de grupos delimitados, estudando categorias que podem ou não corresponder a grupos. Como já dissera Barth, e tantos outros autores (ex.Abner Cohen, 1974:xiv in Eriksen, 1993:41), a importância dos grupos é variável, havendo um maior – ou menor – investimento na organização étnica. Don Handelman (1977) que estudou precisamente a variabilidade da importância organizacional da etnicidade, construiu uma tipologia de graus de incorporação étnica, que vão do grau mais fraco ao mais forte, distinguindo categoria étnica de rede étnica, e de associação étnica, e por último, de comunidade étnica- a forma «mais forte», que envolveria mais investimento e vontade de se viver a etnicidade.41 Nesta perspetiva, a noção de «grupo» de Brubaker equivaleria a um do mais fortes graus de incorporação étnica. Também Weber afirmou que as comunalidades étnicas, baseadas nas crenças de uma ascendência comum, não correspondem forçosamente a comunidade étnicas. As comunalidades seriam «putativas», favorecendo ou não propósitos comuns: «commonality in itself mere putative commonality, not community… but only a factor facilitating communal action» (Weber 1968:389 in Brubaker, 2004:206). (itálicos meus).

Voltemos atrás. É importante referir que Brubaker não nega a existência nem a relevância dos grupos no estudo da etnicidade. Este autor chama a atenção para o modo de constituição e vivência do fenómeno étnico, que pode ou não incluir a formação grupal e/ou comunitária, como diriam Weber ou Don Handelman, sugerindo um olhar sobre a etnicidade sem a enquadrar em grupos específicos. Por isso, sugere que se deva olhar a etnicidade sem a enquadrar em grupos específicos. Dito de outra forma, os estudos sobre a etnicidade não se

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devem centrar apenas em estudos sobre determinados grupos étnicos, de modo a ser possível compreender os modos como a etnicidade se processa - o objetivo desta postura não é abolir os grupos, mas sim entender a etnicidade além destes, para, precisamente, os compreender melhor. Ao pensar a etnicidade deste prisma, Brubaker procurou assim uma alternativa ao idioma do substancialismo e do essencialismo – que pode ser a linguagem dos próprios atores sociais, mas não a do investigador – que não assente num idioma proveniente da escolha individual, mas sim da análise da dinâmica da própria etnicidade. A análise do relacional, do processual e da dinâmica, como Bourdieu disse inúmeras vezes, deverá traduzir-se na própria linguagem de análise, dado que é o único modo de tentar escapar ao que Bourdieu designou como «a nossa tendência de olhar o mundo de modo essencialista» (cf. Bourdieu e Wacquant, 1992:228 in Brubaker, 2004:3). O estudo do grupismo em vez do estudo de grupos (a proposta de Brubaker), na verdade uma recuperação da teoria Barthiana, propõe-se que coloquemos a enfase nas fronteiras nos estudos da etnicidade. É esta a moldura conceptual que proponho, «o estudo da etnicidade sem a circunscrever a grupos delimitados»; o estudo de categorias que podem, ou não, corresponder a grupos, no seguimento dos autores acima referidos. Porém, nem todos os autores concordam com esta perspetiva. Jenkins elabora uma crítica a Brubaker e à sua proposta de analisar «a etnicidade sem grupos». Refere que os grupos étnicos existem na medida em que são tidos como realidades pelas pessoas e ainda que fará pouco sentido analisar «a realidade do grupismo» sem conceber a existência de grupos (Jenkins, 2011:13): «A group does not just happen […] it has to be continuously made and remade. […].Social groups of all kinds must be kept in their proper analytical place – as ill- defined, fuzzy, practical and symbolic constructs – but their ´social reality` still have to be respected, and their production and reproduction investigated» (ibid:13). Jenkins entende que Brubaker nega a existência de grupos, porém, no meu entender, Brubaker não o faz. Antes chama a atenção para o processo da sua constituição, que não tem obrigatoriamente de resultar em grupos mas que pode resultar. Isto é, para se entender melhor os grupos, Brubaker propõe que os olhemos com alguma distanciação.

Como já foi referido, os grupos e as categorias correspondem a diferentes modos de olhar a etnicidade em ação e correspondem à observação de diferentes graus de incorporação étnica (cf. Don Handelman 1977, in Eriksen 1993) que não são estanques ou fixos. Este foco no processual, na etnicidade vivida, não estaria distante do conceito de socialidade, entendido enquanto «experiência vivida» (Viegas,2007:54), vivida de modo desagregado, como afirmei atrás.

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