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Famílias diferenciadas: «é família, mas não é bem família» De novo, os forros enquanto os mais misturados

CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

4.11. Famílias diferenciadas: «é família, mas não é bem família» De novo, os forros enquanto os mais misturados

Tal como pude observar, as famílias diferenciadas, isto é, compostas por membros de diferentes estatutos socioeconómicos e étnicos, são algo muito comum, estando muito das vezes associadas, pelos interlocutores, quer à existência de irmãos de pais diferentes, quer aos «modos de alguém se comportar», o que se refletiria no percurso – mais ou menos falhado – de cada um: «sobes na vida, aquele deixa de ser teu irmão, automaticamente», referiu Arlindo. Observei inúmeros exemplos neste sentido, como por exemplo, entre Gustavo e alguns dos seus irmãos «de pai», com Maria e as suas irmãs residentes nas roças, com Arlindo e as irmãs

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de pai, residentes em Cabo Verde, com Josefina e as irmãs de pai, residentes na Quinta do Mocho, em Portugal, entre outros. Várias são as entradas no meu diário de campo a este respeito, como por exemplo: «Augusto, denomina-se forro. Tem dois irmãos de origem étnica diferente, uma vez que as respetivas mães são de outro estatuto ´porque foram criados nesse meio, di angolar`, referiu» (excerto de diário de campo, 2012).

Rosa fez referência a uma «família antiga», muito conhecida e prestigiada em São Tomé, na era colonial: «nesse tempo, própria família dele era racista! Eu convivi bem com essa gente. Ele andava com branca só, preta ele ignorava, desprezava». Arlindo, presente no seu quintal, confirmou e reforçou, a propósito do mesmo sujeito e respetiva família, referindo-se ao fato de renegarem as pessoas da família com percursos menos valorizados: «pessoas da família deles, que não estudavam, eles renegam. Pessoa não estuda e vai continuar a pertencer a essa família? Não. Não pertence mais! É família, mas não é bem família», disse Arlindo.

Hugo, artista plástico, contou um dia, como um irmão «agora já quer ser meu irmão, durante toda a vida nunca fui seu irmão», associando essa mudança de atitude ao seu recente sucesso profissional. Azevedo, outro artista, não são-tomense, misto de angolano e cabo-verdiano e que se encontrava de férias nas ilhas, estava presente quando Hugo fez este desabafo - estávamos todos num restaurante da capital: «É, o mesmo acontece em Angola e em Cabo Verde! É irmão só por interesse. Mas também, você com esse cabelo, como podia o seu irmão dizer que era irmão?!», ironizou, provocando a risada geral. Hugo usava o cabelo comprido entrançado, surgindo, mais uma vez, o tópico de como se usa o cabelo e de como se deveria usar. Gustavo contou-me ainda como um seu amigo teria durante algum tempo renegado a própria mãe, por ter vergonha da sua origem humilde: «Mãe passava, ele passava na estrada de lá, para não cruzar. Tinha vergonha, senhora pobre…Mas era mãe dele memo!».

Atentemos ao quintal de Rosa, para se perceber como não se pertence nunca da mesma maneira: todos os dias, à hora de almoço, alguém batia ao portão, uma batedela quase em surdina. Tratava-se de um menino, filho de uma sobrinha direta199de Rosa, com cerca de 10 anos, descalço e roto, que ia buscar o almoço para si e para a sua mãe. Nunca foi convidado a sentar-se connosco à mesa e regra geral esperava pelo almoço – que era divido em caixas - no portão do quintal, sem proferir palavra. Um dia aproximou-se da mesa, por ordem de Rosa, os seus olhos olhavam o chão: «ele nem na escola anda! você viu cabelo dele?!», disseram Rosa, Arlindo e João. «É uma vergonha! cabelo assim?!», foram os comentários que o menino ouviu. Um dia João disse: «Chega aqui menino, vem ver chicote!», referindo-se a uma vara que usava para educar o cachorro, pelo que todos se riram muito. Falaram ainda do seu cheiro:

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«você não entra aqui mais a cheirar catinga! Vai por folha de mangueira debaixo braço!». A criança obedeceu e manteve-se silenciosa, continuou a olhar o chão. Reparei na sua barriga, cada vez maior, crescia-lhe a barriga à medida que crescia a apatia e o cabelo amarelava: «Não se esqueça de devolver as caixas, ouviu bem?!», gritou-lhe Rosa.

Observei como em qualquer família existem membros de diferentes estatutos étnicos e socioecónomicos. Mesmo entre os designados «forros ilustres», haverá sempre, uma avó ou um avô cabo-verdiano, o que nem sempre se reconhece, por serem categorias desvalorizadas, como tem vindo a ser explicado. Ainda a este propósito, relembro um excerto da entrevista que fiz a António, forro, antigo deputado:

Jaf: «outro dia disse-me que também era descendente de cabo-verdianos, não foi…?»

A: «Sim, o meu bisavô é cabo-verdiano. A minha avó é filha de cabo-verdiano, nasceu aqui. Portanto, a minha ascendência é cabo-verdiana. O bisavô paterno é mais de Europa, Inglaterra e por aí fora».

Jaf- «intitula-se descendente de cabo-verdianos…?»

A: «não, não, forro! [riu-se]. Aliás, não há forros puros!200Há sempre um bisavô que veio daqui ou dali, não é? Nós recebemos gente de todos os cantos!».

Como disseram António e Francisco, os forros misturar-se-iam desde sempre, pois tal como os portugueses, teriam tendência para a miscigenação, segundo os ideais da «mestiçagem luso- tropical»:201 uma parte das elites portuguesas, tal como uma parte das elites são-tomenses,

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Mais uma vez a categoria «forro» surge enquanto uma categoria que implica mistura, quer com antigos contratados – o lado menos valorizado - quer com europeus, o lado mais valorizado.

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São-tomenses - e também cabo-verdianos - seriam os «africanos europeizados», precisamente devido a uma prática de miscigenação dos portugueses – práticas e «vocação» herdadas pelos são-tomenses, sobretudo forros. Os portugueses teriam uma suposta «disposição para a colonização híbrida explicada em grande parte pelo ´seu passado […] de povo indefinido entre a Europa e a África`» (cf. Freyre [1933] 1992:5 in Vale de Almeida, 2000:163), segundo a ideologia luso-tropical definida por Freyre, existente porém muito antes e muito depois deste autor, como afirmou Vale de Almeida (ibid). O luso-tropicalismo teve o seu auge de aderência a partir dos anos 50 do século XX, nomeadamente através de Adriano Moreira. Neste contexto político-ideológico, a mestiçagem surgiu como tópico da portugalidade e da tropicalidade: os portugueses não seriam racistas por «natureza» teriam, ao invés, uma propensão natural para a miscigenação com outras «raças», o que terá caracterizado o «bom colonialismo português» e as suas práticas tolerantes para com o «outro» (cf. Thomaz, 2000), o que de resto encontra ecos em muitos discursos e práticas de são-tomenses, bem como nas relações interétnicas, como tenho vindo a demonstrar. O chamado «modernismo de Freyre […] tinha como característica o desejo de romper com o latente ou explícito racismo que caracterizava boa parte da produção brasileira sobre o assunto da miscigenação», voltando-se o olhar para uma desmesurada «atenção à híbrida e singular articulação de tradições» (Araújo 1994: 29 in 2000:163-164. Itálicos meus). Como refere Vale de Almeida, antropólogo que realizou trabalho de campo sobre políticas da identidade, da ´raça` e da cultura na Baía: «A plasticidade portuguesa sintetizaria a miscibilidade, a mobilidade e a aclimatibilidade […] resultando em […] patriarcalismo escravocrata e catolicismo sui generis (ibid)», acrescentando que «todos aqueles elementos poderão ser encontrados nas representações da identidade portuguesa, feitas em Portugal, pelas ciências sociais e pela literatura, por discursos oficiais e pelo senso comum das auto-representações identitárias» (ibid), e em muitos outros territórios, como São Tomé, acrescento.

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apostaram nos derradeiros anos do colonialismo moderno - mas não só - na agenda política da miscigenação com a prevalência das qualidades «da europeidade» e por afastamento à «africanidade», como tenho vindo a problematizar. Este seria um discurso recorrente em SãoTomé,202nomeadamente nos quotidianos e no senso comum e entre pessoas de diferentes estatutos étnicos, a par de outros discursos contraditórios e ambivalentes. Interlocutores de diferentes estatutos afirmaram, precisamente, que a realidade das famílias diferenciadas seria mais comum entre os forros, e menos frequente entre os cabo-verdianos, os angolares e os«tongas», que se associam comumente a «grupos» mais fechados, cultural e geneticamente, que constituiriam unidades culturais imutáveis e coesas, sendo os seus membros os tais residentes das «comunidades», que desempenhariam atividades próprias do seu estatuto.

4.12. Etnicidade e ocupação: «Uma questão de ´gosto`: cabo-verdianos gostam de trabalhar a terra, angolares no mar, forros na repartição»

Num serão no quintal de Rosa, questionei sobre as atividades das pessoas de outros estatutos étnicos. Rosa respondeu: «Angolares? Também tem um ou outro que está na repartição. Mas a maioria deles são pescadores», associando, como é comum nas ilhas, determinada atividade ocupacional a um estatuto étnico. Referiu ainda, tal como Beatriz, António, Rui ou Gustavo, que na atualidade, as categorias étnicas seriam mais abertas, quer ao nível das ocupações laborais e das práticas de uniões,203quer dos percursos, sendo uma «abertura relativa», como também assumiram Josefina, Arlindo, José. Rosa afirmou a propósito da abertura: «já não há aquele racismo de antigamente. Antigamente, se eu sou forro, eu não vou juntar com cabo- verdiano, com angolano, mas agora isso já não existe. Até a Joana se quiser ficar com um são- tomense, com um forro, com um preto, pode ficar, antigamente não! Agora já há angolar que já é muito civilizado, civilizado é como quem diz, estudou, já tem outra cultura. Antigamente não. Antigamente dizia-se [falou em crioulo forro] ´você vai tomar mulher angolar?! Ela não sabe nada! Ela fica você feia` quer dizer ´ela não fica você a parecer bem, você não vai ter uma boa apresentação com ela`, não tá a perceber?», reiterando o tópico da «civilidade» de uns e outros, civilidade essa que poderá ser adquirível, pelo que existe mobilidade entre categorias étnicas: um angolar poderá – dificilmente é certo – deixar de o ser. Josefina referiu o estereótipo do cabo-verdiano enquanto trabalhador braçal: «os cabo-verdianos são reputados como pessoas que gostam de trabalhar a terra e também se nota que são muito mais solidários entre si,

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Tal como em Cabo Verde, veja-se por exemplo, Gorjão Henriques (2016).

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Como já referi, é comum um «pai de família» ter vários filhos com mulheres de diferentes estatutos étnicos e socioeconómicos «inferiores», que nunca seriam as esposas oficiais.

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menos egoístas que os próprios são-tomenses, vivem mais ´em comunidade´», que é também como Arlindo descreveu os angolares. Josefina acrescentou: «é verdade que eu não frequento muito as roças, mas eu penso que o convívio é mais…estão ali, trabalham, os jovens estudam juntos, têm atividades em conjunto, há maior convívio. Julgo que é assim. Na cidade existem mais forros, predominante, se bem que também existem os outros grupos, os forros estão em vantagem. Nas roças já se nota que os cabo-verdianos, os angolares, mesmo os forros que ali estão, opá, seja como for vivem… de um modo mais semelhante».

Apesar de se afirmarem socialidades e percursos mais abertos, há simultaneamente um quadro teórico – e práticas - que reforçam as diferenciações, nomeadamente a partir de premissas racialistas que descrevem e re-escrevem os habitantes do arquipélago - angolares, cabo- verdianos, forros, entre outros – enquanto trabalhadores de determinada actividade, ocupando ainda determinados lugares residenciais, estatutários, ontológicos. A associação entre atividades ocupacionais e estatutos étnicos é uma constante, como já tinha observado em contexto de mestrado, associando-se determinada ocupação laboral a um determinado tipo de vida, de comportamento e até de carácter. Por exemplo, os angolares seriam destemidos – e até perigosos e determinados - pois enfrentam o mar; seriam também mais unidos e leais, como referiu Arlindo: «Eu gosto muito do povo angolar […]. É uma pessoa, eles são sérios, e…são teus amigos […]. Mas você mostra que é pessoa simples, entra no meio deles, tem um amigo, aliás, nada toca em você! Angolar é capaz de defender você com unhas e dente! Quando ele nota que você é gente dele! Gente entra aspas, não é? Pessoa simples, que vai conviver com ele, tá a ver? Vai na roça e come com ele, você tem amigo sempre. Mas se você vem, entra grupo dele, a achar que é gente importante, nariz empinado… eu trabalho com os angolares, lá na praia Melão. Eu gosto muito deles. Eles são direto e fiel. Nunca mexem, coisa da obra, para roubar cimento, nada. Mas se fores arrogante, eles podem até te matar. Põem feitiço e tudo», comentou. O próprio Arlindo é de família angolar por parte de mãe, porém devido ao seu estatuto socioeconómico pode na actualidade «escolher» a sua identificação e o próprio modo de pensar a categoria angolar.

Josefina referiu a propósito dos angolares: «maneira…de estar na vida, por exemplo, sei que os angolares gostam de viver perto do mar, mesmo estando na cidade são populações que vivem perto do mar e têm como atividade predominante a pesca», como se esta fosse uma atividade inata a qualquer pessoa daquele estatuto étnico. José acrescentou sobre os angolares: «Diferença é modo de pensar, mentalidade, modo de aconselhar, modo de cozinhar, a língua».

Os diversos interlocutores concordaram que os angolares «fazem de pescadores e palaiês», e mesmo quando migram acabariam por se fixar na praia ou perto da praia, como se fosse algo

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inevitável. Porém, se mudassem de comportamento, nomeadamente ocupacional, poderiam até transformar-se em pessoas de outros estatutos étnicos, como forros, como revindicou Fausta. António reconheceu isto mesmo: «A vida está muito difícil, por isso agarram o que podem, por isso é que há forros também pescadores, algumas forros são palaiês, não é? palaiês forro, essa atividade é praticada para sobrevivência. […]. Não se pode estar a espera de só atividades exclusivas, hoje. Mesmo na agricultura, já se vê angolares a praticar a agricultura, forros a praticar a agricultura, cabo-verdianos naturalmente a praticar a agricultura. Mas os cabo-verdianos que tiveram ocasião de ir a escola, têm tido bolsas, alguns, para formação superior, o governo de Cabo Verde tem estado a dar bolsas para formação».

José e Josefina acrescentaram em conversa conjunta que os cabo-verdianos são «mais liberais», concordando que «os forros discriminam, tem gente que ainda hoje faz isso, mas está a mudar muito», afirmaram.

4.13. «Comprar» terra: o que une José e Josefina

Em 2014, vim a perceber que há algo mais que une Josefina e José, pois ambos tinham «comprado»204lotes de terra a uns pequenos agricultores, cabo-verdianos, por intermédio de José: «lido muito bem com eles», explicou, acrescentado que estes queriam vender a terra «para construírem uma casa na cidade, para vir para baixo».

O lote de Josefina é perto da zona onde José está a construir a casa no campo, uma zona que começava a ser bastante cobiçada, nomeadamente por empresas ligadas ao turismo «devido ao alto interesse da zona»,205 referiram Josefina e José. Este processo de compra estava a ser bastante atribulado, estando mesmo em tribunal, pois apesar da «compra» de terra ter sido registrada no notário, surgiram, depois disso, pessoas a reclamar as terras já compradas. Seriam pessoas «ligadas à administração pública, membros de famílias poderosas. Eles é que têm o poder», explicaram José e Josefina.

Num sábado, no quintal de Rosa, Josefina recebeu um telefonema de uma amiga em fúria, Rita, que também tinha comprado um terreno ao lado do de Josefina, aos agricultores cabo- verdianos conhecidos de José, e a quem também queriam «tirar a posse para dar a alguém grande», contou. No quintal, ficaram todos muito inquietos. Foi neste contexto de exaltação dos ânimos, que tive acesso a uma cópia de uma carta de protesto que José e Josefina tinham escrito e entregue no registo geográfico e cartográfico, na qual referiam, entre outras coisas,

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«Compraram» entre aspas - normalmente usa-se a expressão «dar uma indemnização» - pois segundo «a lei não permite vender, pelo contrário. O que pode acontecer é ceder o direito de usufrutuário para outrem», explicou Cláudio.

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que «os são-tomenses não são tratados de modo semelhante, há uns privilegiados, [pelo] ainda não vivemos em justiça ou democracia», afirmações assinadas por ambos e por mais umas pessoas que também tinham sido enganadas. Já perto do fim da minha estadia em 2014 – na última semana - Josefina e José participavam de um movimento «dos cidadãos indignados» […] um movimento sem partidos», disse Josefina que em 2014 estava bastante mais ativa a esse nível. Um grupo de pessoas encontravam-se no quintal de Rosa e daí partiam para as reuniões na cidade capital, contando com o apoio moral da dona da casa. O debate político era uma constante no quintal de Rosa, sobretudo entre Arlindo, João, José, Josefina e a própria Rosa (mas menos),206 tendo escutado muitas queixas sobre a corrupção da classe política no poder, o estado de ruína e apropriação das roças e das terras, entre outros assuntos. Registei um sentimento de indignação e revolta para com o seu país que era consensual e unia estas pessoas, como exemplifico com mais um excerto do diário de campo: «Rui almoçou connosco. Estavam Josefina, Rui, Arlindo, Rosa e José. Falou-se de política e religião. A crítica política parece ser um modo de estar e um modo de partilhar algo comum; de união. Algo cultivado e que vem detrás. Os almoços em casa de Rosa são uma amostra disso mesmo, o que é extensível a vários lugares e ocasiões […]. Consigo imaginar esse grupo de pessoas na época colonial, assim reunidos, nos quintais, onde não se imagina que se fala assim de política de forma tão quotidiana como quem fala de comida, de religião, de estórias de seres encantados». (Janeiro de 2014).207 Passemos à visita ao papá João e às trocas de conhecimentos sobre a terra.

4.14. A visita a papá João: a terra que une, a terra que desune. Troca de produtos e de

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