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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.1. O percurso de José

Relembro que José tem 50 anos e foi protagonista de um percurso de ascensão, porém

atribulado. Se em 2012 era técnico de terreno de uma ONG francesa,218 com sede na cidade de

São Tomé, em 2014 estava desempregado e sem acesso a qualquer tipo de subsídio de desemprego, pelo que se tinha voltado para a agricultura de subsistência, que praticava no seu lote de terra localizado na dependência da roça onde cresceu. Vivia porém fora da roça, na casa de campo que se encontrava a construir já há alguns anos,219 tendo ainda uma casa na cidade, como já referi anteriormente. Atentemos no seu percurso, da infância como «gabão» à altura em que migrou para a cidade, para poder estudar e obter «um bom emprego», o que o fez sentir-se um pouco «menos estrangeiro», como explicou.

5.1.1. Uma infância como gabão. De gabão a «Mansê!»: «tá a andar com branca!»

José contou que enquanto criança e adolescente, residente numa dependência de uma roça isolada, sempre sentira vontade de «querer sair do meio e frequentar a zona».220 Foi com esse objetivo que se inscreveu na equipa de futebol de Santana, uma área semiurbana não muito distante da capital, onde enfrentou alguns obstáculos: «Chamavam cabo-verdianos de gabão. Hoje já [se] é menos gabão […]. [era] o Santana futebol clube, mas dois anos depois de me inscrever, continuavam a não me pôr a jogar porque me chamavam gabão, e que não era um bom jogador por ser gabão! É estupidez, não achas?», perguntou-me. Se cresceu enquanto gabão,221 que significa estrangeiro, na idade adulta, já depois de ter conseguido casa e emprego na cidade, passou a ser tratado por mansê pelos «colegas»222 da sua roça, como pude testemunhar, aquando de uma visita conjunta à mesma. Nesse dia, à medida que passávamos pelos campos de cultivo, gritavam-lhe: «eh, tá a andar com branca! gente importante!» e ainda «Mansé, mansê!» ao que este respondia do mesmo modo: «mansê!», rindo-se. Explicou-me mais tarde que era habitual tratarem-no daquela maneira, que «gabão é pessoa que veio, de fora. Pessoa que veio de cor negra. De cor branca é mansê. Mansê é um branco, por exemplo.

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Organização ligada às Nações Unidas, que apostava na implementação de projectos internacionais relacionados com o desenvolvimento da agricultura familiar «biológica e sustentável».

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Aí era vizinho de um casal de franceses que possuíam uma enorme vivenda que José ajudou a construir, e de quem se tornou amigo íntimo, tendo mesmo vivido com este casal no período atribulado do seu divórcio, assim como com Rosa.

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Área urbana ou semiurbana.

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Ao nível do estatuto.

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De Angola, de Cabo Verde, chamava-se gabão». Ou seja, mansê seria um estrangeiro com mais estatuto, nome pelo qual o tratavam desde a altura que o souberam a trabalhar na ONG internacional, na cidade, ascendendo de estatuto.

5.1.2. Ser jogador de futebol para ir a Portugal ver a minha mãe; «4ª classe de antigamente»

José referiu sentir-se agradecido pela educação que avó materna lhe deu, uma educação humilde e honesta e que graças à avó pôde estudar até à «4ª classe de antigamente […]. Educação, a forma de comportar em casa, ter horários de chegar a casa, querer saber onde eu andei, o que andava a fazer, se soubesse que eu tinha ido buscar cana em campo de alguém, puxava orelha, dava palmada […]. 4ª classe foi muito para mim, senti bem, com possibilidades, de escrever cartas, para pessoas que estavam em Portugal na altura, [também] lia cartas […].Minha avó223

recebia cartas, da minha mãe, e ali vinha alguns cumprimentos para mim», confessando a frágil ligação à mãe, com quem viveu pouco tempo. Esta trabalhava de roça em roça, deslocando-se bastante, pelo que José ficou sob o cuidado da avó materna, quem o criou. A mãe migrou para o Príncipe, e mais tarde, para Portugal, onde acabou por falecer. José contou a este propósito o seu principal sonho de infância: «fui crescendo, a querer ser um grande jogador de futebol, para poder ir para Portugal, perto da minha mãe, porque o visto era muito difícil […]», para a conhecer melhor224

bem como aos irmãos que entretanto já visitou.

Contou que a mãe, o pai e os avós - maternos e paternos - eram cabo-verdianos, uns de Santiago, outros de São Nicolau. A avó materna foi para São Tomé e Príncipe com os filhos, em diferentes períodos: «Minha avó veio em 1963. Terminou o contrato foi [Cabo Verde]. Em 1966 voltou, que eu já nasci aqui. Trouxe a minha mãe e mais 2 filhos. Em 1963 deixou cá um filho, levou minha mãe e minha tia [de volta]». Revelou como o seu nascimento foi alvo de polémica, uma vez que o seu pai, que fez a tropa em São Tomé, já tinha família em Cabo Verde: «Eu tava na barriga da minha mãe, acontece que meu pai namorou minha mãe escondido, meu pai era casado em Cabo Verde. Então, tropa de meu pai acabou, meu pai foi [para Cabo Verde]. Minha avó descobriu que minha mãe tá grávida e foi obrigada a ir para Cabo Verde no fim do contrato para ir procurar o meu pai, para responsabilizar filho! Foi aí

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A avó não sabia ler.

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Não chegou a ver a mãe na sua primeira ida a Portugal – país que visitou 3 vezes - pois quando conseguiu finalmente o visto, esta já tinha falecido.

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que minha avó descobriu que meu pai já tinha esposa, ficou muito zangada, voltou para São Tomé, meu pai também voltou, mas minha mãe já ficou decepcionada, separou, por ter descoberto que meu pai era casado e veio a arranjar outro senhor e mais tarde foram juntos a Portugal», concluiu.

5.2. «Mas também existe na cultura [cabo-verdiana] o dar mais valor às coisas da terra, até à língua»; «tenho no sangue os pais cabo-verdianos»

José recorreu ao argumento do sangue na sua identificação enquanto cabo-verdiano – referiu- se também a outras identificações, como se verá - realçando que o era devido à sua ascendência, por parte de pais e avós. Algo importante na sua afirmação enquanto descendente de cabo-verdianos, era o valor atribuído «às coisas da terra, naturais», assim como à língua de Cabo Verde, uma metáfora desse sangue e de algum orgulho de pertença, sentimento que segundo José, distinguiria os cabo-verdianos dos são-tomenses. Isto seria notório, por exemplo, no modo como estes últimos escondiam falar o crioulo forro, nomeadamente em público e na cidade. José referiu-se – tal como Josefina e Arlindo, entre outros – à falta de união entre os forros (o que seria cultural, segundo o discurso hegemónico), às práticas de discriminação entre os mesmos e à forte hierarquização social, nomeadamente através da exibição de títulos como doutor. Atentemos no seu discurso: «Mas em São Tomé, os são-tomenses exigem que se lhes chame engenheiro ou doutor, humilham os amigos, com esse comportamento. Por isso, para mim há uma diferença na forma de pensar e ao mesmo tempo cultural, [entre] cabo-verdianos e são-tomenses. Mas também existe na cultura o dar mais valor as coisas da terra, até à língua, enquanto os são-tomenses muito menos que os cabo-verdianos. São-tomenses não dão tanto valor às coisas da terra, nem à sua língua no meio urbano, língua de forro no meio urbano não se ouve muito. Eu tenho nacionalidade são-tomense, mas tenho no sangue os pais cabo- verdianos. Eu cá falo com todos os descendentes praticamente em crioulo, também em Portugal, das 3 vezes que fui lá, nunca falei português com um cabo-verdiano. Sempre crioulo [de Cabo Verde]. O ambiente facilitava mesmo falar a língua da terra». Vemos como o crioulo de Cabo Verde ganha estatuto de língua da terra, tal como o crioulo forro, o que demonstra a disputa de que tenho vindo a falar, reivindicando-se constantemente a pertença à terra e às ilhas. Repare-se como a prática de falar o crioulo de Cabo Verde, correspondia a um sentimento de religação e respeito à sua família «de origem», à terra dos seus pais, um marco étnico que por vezes se valorizava, mas não sempre, como exemplificarei. Este orgulho em Cabo Verde – e nos seus ascendentes - surgiria em contexto internacional, como na «viagem a Portugal

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[onde] vi os cabo-verdianos falarem crioulo constantemente, os guineenses constantemente, e os forros não», referiu José. Esta prática linguística, indicadora do orgulho étnico, distinguiria os cabo-verdianos e descendentes dos forros, independentemente do estatuto socioeconómico de cada um, devido ao que José classificou de complexo de inferioridade: «em Portugal, talvez por se sentirem inferiorizados, não sei […]. Mas no fundo, é uma ignorância. Os cabo- verdianos até com estudos e boas formações e não preocupam com nível que têm e falam e estão à vontade. Seja doutor ou engenheiro. O são-tomense já não é assim».

Também o cônsul de Cabo Verde, que entrevistei em 2012, se referiu ao crioulo de Cabo Verde enquanto um marco identitário valorizado em diferentes gerações. Afirmou que este crioulo era o mais falado em São Tomé e Príncipe, considerando-o a língua que unia as pessoas com essa ascendência, tendo estatuto de língua de família e «de casa», sendo um marco que se trazia da «terra de origem» e/ou através dos ancestrais: «os mais velhos sentem-se cabo-verdianos, há alguma união, solidariedade, sentimento que já se trouxe de Cabo Verde. O nosso crioulo, não há cabo-verdiano que não fale o nosso crioulo. Calcula-se que em São Tomé e Príncipe o crioulo de Cabo Verde é a primeira língua mais falada. Os descendentes também sabem sim, é a língua de casa, que aprenderam com pais e avós. Há orgulho de falar essa língua». Insistiu, no seguimento de José e de pessoas de outros estatutos étnicos, no sentimento de união e solidariedade entre os cabo-verdianos, nomeadamente entre os mais velhos, sentimento que seria caracterizador da «comunidade» cabo-verdiana nas ilhas, mas não só, seria inclusivamente transversal às «comunidades de cabo-verdianos» residentes em Cabo Verde e noutros países, algo inato à própria «natureza cabo-verdiana», o que os distinguiria dos forros. O mesmo discurso «de união» é observável em relação aos angolares, afirmações que remetem de algum modo para ideais de «comunidades» concebidas enquanto mais homogéneas, fechadas e indistintas.

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