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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

5.9. Da distribuição desigual da terra: «uma luta dos diabos!»

Como já vimos, José explicou que os cabo-verdianos que conseguiram «sair [da roça], são aqueles que sempre mantiveram um pé fixo na vila ou na cidade. E aí desenvolveu um bocadinho de negócio, mas é muito fraca tá a ver? E há alguns a viver no estrangeiro que conseguem alguma coisa, em Portugal, Cabo Verde, preferem [emigrar], porque em São Tomé sofreram muita discriminação. Para ter terreno, por exemplo, aquilo foi uma luta dos diabos!». José refere-se à injusta distribuição de terra que se verificou quer na independência, com a nacionalização das roças, quer com a privatização da terra a partir da segunda década de 80, processos nos quais as terras maiores e mais produtivas, bem como as roças que passam a empresas estatais, ficaram nas mãos de forros influentes, ligados ao poder político e não nas

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Depois de ter trabalhado na construção civil, o seu primeiro trabalho na cidade, trabalhou 2 anos numa escola «enquanto vigilante-contínuo».

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Também este afirmou ter conseguido o seu primeiro trabalho na cidade numa ONG estrangeira, graças «a uns franceses», que teriam desbloqueado a sua entrada enquanto «pessoa sem nome de família grande».

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mãos dos antigos trabalhadores das roças.275Autores como Eyzaguirre (ex.1988), Seibert (ex.2001), Nascimento (ex.2002b) e Temudo (2008) estudaram a relação entre posse da terra e pertença a grupos sociais estratificados e entre a política e a posse e uso da terra em São Tomé e Príncipe. Reveja-se sumariamente. Os dirigentes do Movimento de Libertação de São Tomé e Príncipe (MLSTP) passaram a ter domínio da terra e da agricultura após a independência política, num processo que favoreceu os denominados «nativos», que ficaram com o controlo político e social das roças, apropriando-se das terras, «símbolo emblemático da sua identidade» (cf.Temudo, 2008:59). Rui, como muitos outros forros, conseguiu um lote de terra numa roças/empresa estatal, por aí ter desempenhando algum tipo de trabalho no pós- independência, enquanto muitos dos cabo-verdianos ficaram sem acessos à terra, nomeadamente os mais idosos e em idade de reforma, o que os impediria de trabalhar, segundo o que se alegou para a não atribuição de lote. Ficaram assim, em situações de extrema vulnerabilidade, a trabalhar o mato em péssimas condições, como pude observar e como referiram Seibert (1991:29) e Eyzaguirre (1986-337-338). A par, há uma desestruturação da economia,276 que se reflete por exemplo, na ausência e/ou degradação das estradas, o que impossibilita, aos pequenos agricultores, o escoamento do que se produz. O mesmo inacesso face à terra se verificou em relação aos descendentes de antigos contratados, considerados «muito novos» para obterem lote. Conforme explicou Seibert «muito embora fosse já membro do FMI desde 1977, o governo santomense só em 1985 inicia um processo de liberalização económica, adotando um Programa de Ajustamento Estrutural (PAE) a partir de 1987» (Seibert 2002a: 828 in Temudo 2008:11). Nesta altura «o governo inicia um primeiro processo (1985-1989) de privatização da terra – que decorreu de forma ´arbitrária`. Em 1989 só cerca de um terço desta terra se encontrava em cultivo» (cf. Seibert 2001a: 229 e 2001b: 831 in ibid:11). Como já se disse, muitas desta terras foram apropriadas pelo Estado que «[…] se reapropriou das parcelas muito produtivas, para depois as deixar de novo abandonadas» (Eyzaguirre 1988:353 in Temudo, 2008:79). Muitos dos antigos contratados perderam inclusivamente o acesso às lavras «de modo algum substituídas pelos lotes resultantes do processo de distribuição das terras» (Temudo, 2008:70), nomeadamente com o Programa do Ajustamento estrutural do Fundo Monetário Internacional (ibid:70). As lavras eram pedaços de terra situados dentro ou fora das roças, nas quais alguns dos antigos contratados trabalhavam ainda no colonialismo aquando do fim do contrato. Esta exploração era-lhes cedida «a título precário» e informal por parte de

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Os proprietários das médias e grandes empresas, as antigas roças, vivem na cidade, e têm quem trabalhe a terra por eles, nomeadamente os antigos contratados e seus descendentes, mas não só. Em algumas roças desenvolvem-se atualmente projectos relacionados com o turismo e com o ecoturismo, como já foi dito.

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alguns roceiros e administradores277com o propósito de «acomodar a mão-de-obra às roças […]

tornava-se condição de reprodução social do pequeno proprietário semi-dependente» (Nascimento, 2008:129). Segundo Nascimento, este acesso à terra por parte dos contratados garantia aos roceiros «preservar intocada a estrutura fundiária como garante da sua hegemonia», o que também terá contribuído para a manutenção de uma espécie de «ethos» de trabalhador rural exemplar, associada aos «cabo-verdianos di tempo», como observei.

Muitos optaram, como se referiu, pelo êxodo rural, que se verificou também nos últimos anos do colonialismo, assim como no pós-independência, bem como nos anos 80-90, com a privatização das roças, e na atualidade. Cabo-verdianos e descendentes apostaram também na emigração, para países como Portugal, Inglaterra, França, Angola, Cabo Verde, Gabão, segundo o que foi referidos pelos interlocutores. Alguns antigos contratados fixaram-se, ainda no colonialismo e no fim do seu contrato «fora das roças, em zonas que rodeavam a cidade capital, como em São Marçal»278(Nascimento, 2008:127). Aí alguns conseguiram um pedaço de terra para construir uma casa e plantar o que pudessem, devido à abundância de água nesse local, onde se viam «grandes hortas mantidas pelos cabo-verdianos» (ibid). Esta «comunidade de cabo-verdianos livres em São Tomé» fazia agricultura de subsistência, sendo responsáveis por produzir «milho e batata e vendiam esses produtos a cabo-verdianos das roças limítrofes, que aí passeavam aos domingos», uma vez que «não havia mercado para os seus produtos na cidade» (ibid:128). Ainda antes da independência há também registos de migrações de cabo- verdianos para a cidade «como a rua do Rosário, onde realizavam os seus convívios, isto é, bailes semanais para o que se cotizavam em dinheiro ou géneros […] firmados nos laços identitários, reconstruiram uma sociabilidade e reinventaram práticas conducentes a um associativismo […]», conforme relatou Nascimento (ibid:130).

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