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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.20. Rui e Gustavo: de novo «a classe» e o género

Apresento em pormenor dois dos meus principais interlocutores: Rui, que conheço desde 2004,130e Gustavo131que conheço desde 2002. Tendo sido bem aceites132 por Rosa, Rui e Gustavo acabaram por me visitar no seu quintal. Rui tem 40 anos e em 2004, quando o conheci, auto intitulava-se «forro com orgulho», uma designação que mantém em 2012 e 2014 dependendo do contexto. É taxista e tem origens humildes. Possui o 5º ano de escolaridade, «vive junto» e tem 3 filhos. Fez segredo do nascimento do seu último filho, ainda bebé em 2014, porque o seu «amigo português»,133 que por vezes trata por patrão, zangar-se-ia se soubesse «que fiz mais filho», o que confessará num almoço em casa de Rosa, que se mostrou bastante revoltada com a situação: «quê?! Homem zanga?!». Rui reside na Trindade, a terra de Rosa e dos seus pais e avós, que é considerada «o berço dos forros e da resistência colonial»; o lugar genuíno de forro, é uma localidade com um importante valor simbólico. Rui é uma pessoa muito ativa em termos associativos e é muito reconhecido na sua localidade. Ao apresentar Rui a Rosa, estes aproximaram-se logo muito, não só por serem da Trindade como por terem parentes em comum. «É boa família […] família antiga da Trindade», disse-me Rosa, aprovando a companhia de Rui. Tanto os pais de Rui como os de Rosa são «forros di tempo», «antigos e tradicionais», que possuem a sua própria terra, a gleba di forro, que era já «herança

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Quase inexistentes em São Tomé e Príncipe.

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A Quinta do Mocho, com casas de cimento, não será tão desvalorizado em São Tomé, contexto onde é mais que habitual e comum não se ter água canalizada e eletricidade: Josefina cresceu a ir apanhar água ao rio, com a mãe e os irmãos, mesmo sendo funcionários públicos.

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Acompanhou-me em todo o trabalho de campo nessa altura, em contexto de mestrado.

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Coloco a hipótese de ter dois bons amigos homens em São Tomé, julgo que estará também relacionado com o facto de me terem conhecido «enquanto a namorada do professor de escultura português», pois assim fui introduzida às ilhas, tendo entre eles um certo «respeito masculino» (igualmente machista, é óbvio), talvez tornando as nossas relações de algum modo menos ditadas pelo género, numa sociedade bastante machista. No entanto, a minha proximidade aos dois «rapazes», nunca deixou de ser comentada, como referi no 2º capítulo. Gustavo, quis conhecer Rui, tendo-lhe dito: «ela é namorada de meu amigo português, faz atenção», o que certamente também se relacionará com o fato de ser uma mulher branca, ou seja, vista como uma mulher, é certo, mas uma mulher com algum poder, uma quase homem.

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Contrariamente a Benny.

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dos avós». A posse da terra como que atesta a sua «genuinidade» enquanto forros verdadeiros, di tempo, independentemente de serem mais ou menos humildes. A posse da terra, neste caso, equivale ao capital social e simbólico, mesmo podendo não se constituir enquanto fonte de um recurso económico, por poderem ser terras não plantadas (não é porém o caso de Rui).

Rui, no quintal de Rosa, no primeiro dia em que foram apresentados, referiu: «Vou buscar minha madrinha ao aeroporto». Rosa interrogou-o de imediato: «sua madrinha? quem é?». Afinal a madrinha de Rui é prima de Rosa: «Somos muito amigas!» - exclama. Ainda que Rui fosse de um estatuto socioeconómico mais baixo, Rosa convidou-o para almoçar uma ou outra vez, dizendo: «merece, parece ser bom trabalhador!». Rui fazia sempre muita cerimónia em casa de Rosa e normalmente não queria entrar, mantendo-se no portão enquanto esperava por mim: «Estou sujo de óleo! Não! Sei meu lugar! Isto é casa de muito respeito, muito!», justificava-se por permanecer ao portão, apesar de já ter sido convidado a almoçar.

Gustavo é artista plástico e tem 35 anos. É casado e tem 2 filhos. Possui o 12º ano de escolaridade. Em termos económicos, de prestígio familiar e posse de terrenos, entre outros elementos importantes ao nível local, pode-se considerar que pertence à classe média ou média alta (conceito que explico mais à frente), como o próprio se revê. É filho e neto de «forros antigos», prestigiados, o que também o aproximou de Rosa, independentemente da sua profissão, considerada um pouco extravagante mesmo pela sua própria família. Gustavo, das poucas vezes que convivemos no quintal de Rosa, agiu como se estivesse em sua própria casa, muitíssimo à vontade.

3.21. «Miúdas de antigamente»

Gustavo nunca alinhou, porém, em sair à noite comigo e Josefina, e o seu papel de género perante esta família, tornava-se vincado, nomeadamente à mesa: esperava sempre que o servissem, não levantando sequer o prato, não ajudava em nada; o oposto de Rui nesta casa. Em conversa comigo perguntava: «Estás com Josefina? Epá, ela é miúda de antigamente. […] você fica só a tomar chá com ela. Eu não vou sair para tomar chá! É vergonha». Tinha o mesmo tipo de discurso em relação à sua esposa: nunca saiam juntos às sextas ou sábados, pois G. saia com os seus amigos rapazes para a discoteca e para beber cerveja, enquanto a esposa «sai sim, com amigas, tomar um chá, mas volta cedo», respondeu-me. Na verdade nunca a encontrei.

A sua esposa134 seria então como Josefina, no entender de Gustavo e de muitos outros homens

em São Tomé, seriam «senhoras de casa», «esposas oficiais, senhoras sérias, para casar» de

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uma certa classe e estatuto, não podendo ser pessoas de frequentar bares ou discotecas, de ficar a beber cerveja; seriam antes boas donas de casa e de família, representando os valores ideais que asseguram a pertença a uma classe/estatuto, tal como se referiu Ortner (2006). Saí algumas vezes à noite com Gustavo, ao longo dos anos, para jogar matraquilhos ou snooker, e de facto,

eu era quase sempre a única rapariga, num grupo de rapazes.135Em 2014, todos frequentávamos

a galleria de arte da cidade, com diferentes graus de frequência (Gustavo fá-lo todos os dias, de dia e de noite, eu vou durante o dia e raramente à noite, talvez uma vez por semana; Josefina vai uma vez por mês). Quando aí estávamos os três, Gustavo ficava a beber cerveja com os seus amigos homens e nunca se sentou connosco, Josefina pedia refresco ou chá e requisitávamos uma mesa e eu tinha o cuidado de não a deixar sozinha, levantando-me por vezes para colocar a conversa em dia com Gustavo.

3.22. «Classe média» em São Tomé e Príncipe: migrações e estudos; ter empregada e ter cisterna de água

Josefina considera-se da classe média. Deste modo se classifica a si e à sua família. Privilegio a perspetiva emic – ou seja, o modo como se define – bem como considero os capitais socioeconómico, culturais e simbólicos, tendo em conta o contexto local. Como já se disse, esta viaja anualmente ou de dois em dois anos, nomeadamente para Lisboa e Paris onde realiza consultas de rotina, uma vez que em São Tomé e Príncipe não há várias especialidades

médicas, dando um salto a Londres136onde reside a irmã «para o ano gostava de aperfeiçoar o

inglês, que é hoje em dia algo fundamental para o trabalho, tou a pensar ficar um tempo em Inglaterra em casa da minha irmã», referiu em 2012. Josefina associa a formação de uma classe média em São Tomé e Príncipe às experiências migratórias que possibilitam o

desenvolvimento de habilitações académicas,137e acrescentemos, oalargamento das

socialidades, como refiro de seguida. Perguntei-lhe a este propósito, em fevereiro de 2014:

Jaf: «pode-se falar de uma classe média em São Tomé?».

Josefina: «Sim, penso que sim. Diz-se que antigamente não havia ricos, muito ricos. Mas hoje já há. Entretanto pessoas que migraram e voltaram, que se formaram, têm empregos e ganham razoavelmente bem, acabam por formar a classe média».

Na zona onde Rosa vive, corre água há uns 12 anos. Antes disso, não tinham água em casa, o que é uma realidade habitual para a maioria dos são-tomenses.

Rosa, antiga funcionária pública tal como o seu marido, explicou: «Quem trabalha de 2ªf a

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Note-se que eu nunca fiz parte do grupo de amigos de Gustavo, apesar de os conhecer desde 2002.

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Em 2014 viajou Lisboa-Paris-Inglaterra-Lisboa, entre Julho e Setembro. Já tinha estado em Lisboa em 2012, sendo que nos encontramos das duas vezes. Arlindo também veio 2 vezes, em 2012 e 2014.

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Em São Tomé e Príncipe há muito poucas opções de cursos superiores e até há bem pouco tempo não havia nenhuma.

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6ªf, com filhos pequenos, tem uma empregada. Temos [tínhamos] carência de água aqui, água não corria. Mesmo hoje temos dificuldade, por isso temos cisterna ali, não tá a ver? Água quando corre, enche e pronto. E depois está 2 ou 3 dias sem correr, e se não correr, somos obrigadas a ir comprar água […].Quando os miúdos eram pequenos, íamos buscar água ali na Ponte Tavares, os miúdos também iam, e ajudavam. Fica a uns 20 a 25 minutos a pé». Repare- se que Rosa refere-se ao fato de ter empregada como mais alguém em quem tem de «ficar de olho»: «A minha empregada não entra dentro de casa, fica só cá fora! […] E se ela está cá e tenho de sair, eu deixo tudo trancado! aqui não tem ninguém de confiança! Hoje em dia??!!! Muito difícil! Joana punha lá uma dentro de casa?! Elas não sabem cozinhar! Na minha casa sou só eu quem cozinha! Joana punha lá uma que até ia roubar! Até calcinhas de Joana elas iam roubar!». Ter água corrente em casa é um enorme privilégio nas ilhas – a água é um bem muito escasso138- imagine-se então poder ter uma cisterna ou reservatório, algo que Rosa conquistou apenas há poucos anos atrás, mesmo sendo funcionária pública, mesmo tendo empregada, sinal do seu estatuto. A propósito de se ter água em casa, e da importância desse facto, uma noite ao jantar Maria contou a história de um homem, seu vizinho, que a acusou de roubar água «e de ainda dar para público!», o que provocou a risada geral à mesa (estavam Rosa, Josefina, Arlindo, José). Maria terá respondido ao vizinho: «você é EMAE?139É EMAE?!», o que gerou nova risada. Ter água e poder distribui-la seria sem dúvida, uma estratégia de profunda retenção, no seguimento de Weiner (1992 in Harrison, 2007:5). Maria contou na mesma noite, após o jantar, uma história terrível de uma rapariga, também sua vizinha «que marido tava a perseguir com machim», o que também faz parte do quotidiano. Maria140teria ido chamar a família da rapariga, para a tentar salvar de ser morta.

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