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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

3.14. Conjunto tem misturas: uma questão de «gosto» 109 e de género

Josefina não frequentava cafés populares ou discotecas, quando saia optava por ir, por exemplo, a inaugurações ou espetáculos ocasionais que ocorriam no hotel Pestana ou no Clube Santana, prestigiados lugares «internacionais», por vezes organizadas pelo banco da empresa onde trabalhava em 2012. Josefina frequentava esporadicamente um requintado salão de chá – também quis ir conhecer um novo bar pertencente a um francês - e íamos por vezes juntas à galeria de arte da cidade, a CACAU (Casa das Artes, Criação, Ambiente, Utopias), em

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O Compal de maçã.

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2014.110

Um dia de Março de 2012, bateram ao portão, era o tio Silvino. Ele e a esposa111 iam visitar- me algumas, vezes desde o acidente, apesar de não nos conhecermos anteriormente. «Ah, Tio Silvino, entra. Então?», cumprimentava-o Rosa com 2 beijinhos, o que não era habitual fazer com outras visitas. «Tá melhorzinho? como está? sente aqui um bocadinho. Só que aqui tem mosquitos…», referia Rosa, muito cerimoniosa, indicando-lhe os cadeirões para se sentar, onde eu também ficava sentada, com a perna esticada apoiada num banco.

Tio: «só um bocadinho, só 5 minutos. Como está a menina? E a sua família?», dirigindo-se a mim.

Jaf: «melhor, obrigada», respondi envergonhada por estar de pijama.

Josefina foi «fazer refresco», uma limonada, pelo que ficámos a conversar e a beber o sumo nos cadeirões do quintal, à medida que Rosa ia afastando os mosquitos com um pano, quer de tio Silvino, quer de mim, pois estávamos precisamente na hora deles, antes do anoitecer.

Rosa: «Tio Leonel, como é que esta lá em casa?» Tio: «Tá tudo bem, a filha tá um bocadinho em baixo, não está contente no trabalho lá em Angola112 […]». Nesse dia, tio Silvino contou que tinha ido a uma festa «muito interessante», na CACAU onde atuara «um ótimo músico da Guiné, tocou saxofone, foi muito bom, disse, acrescentando que era uma festa organizada por um banco, na qual «só se entra por convite», inquirindo o porquê da ausência de Josefina. Tio: «Eu achei que a Josefina também iria. Tanto tempo que não a vejo nesses ambientes».

Rosa: «Tem razão. De vez em quando é preciso a gente divertir-se um bocadinho. Não é sempre mas…».

«A empresa onde trabalho é do outro banco», respondeu Josefina.

Rosa: «É. É verdade, e quando fazem qualquer coisa, convidam sempre. É verdade».

Numa outra noite, na primeira semana de 2012 - ainda nos conhecíamos todos muito mal –

atuava um conjunto113mesmo ao pé da casa de Rosa, cuja música – muito alta - nos impedia de

adormecer. Eu queria ir assistir e comentava gostar muito daquele tipo de música. Rosa respondeu por fim: «Se Joana dissesse mais cedo, Arlindo podia ir consigo uma meia hora, uma hora», referindo-se ao facto de Arlindo já ter ido para casa. Nunca colocou a hipótese de eu ir com João, o seu filho, que estava presente no quintal enquanto falávamos.

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Em 2012 Josefina praticamente não saía de casa em atividades de lazer, o que já não acontecia em 2014.

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Não os voltarei a encontrar em 2014 nem sequer no fim de 2012, apenas encontrei ocasionalmente a tia Júlia a fazer compras na prestigiada mercearia portuguesa da capital.

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A sua filha teve de emigrar, pois não conseguia encontrar trabalho em São Tomé, mesmo sendo licenciada

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«[É] música típica, chama-se fundão. Tem misturas nesses lugares», disse João.

Eu estava mesmo determinada a ir assistir,114porém sabia que não queriam que fosse sozinha,

pelo que acabei por ser eu a convidar João, olhando diretamente para Rosa, que lá consentiu: «mas só meia hora» recomendou e assim fizemos. Lá fomos sem trocar palavra, pois João manteve-se completamente distante, sempre a olhar para o relógio, sem mostrar qualquer entusiasmo – e mesmo algum desprezo - pelas belíssimas guitarradas que se faziam ouvir no terraço onde atuavam ao vivo os Sangazuza. Escrevi o seguinte dessa noite, na primeira semana de 2012: «Ouve-se música, muito alto e já são 23h00. Rosa diz que é música ao vivo acho que

são os Sangazuza, mesmo ali ao lado, em água-Arroz».115 Os Sangazuza são um grupo musical

histórico muito conhecido em São Tomé,116tocam um estilo de música, o conjunto. A maioria

dos seus membros são forros e cantam também nesse crioulo. Rosa comentou: «Eles ficam lá sábados ou sextas. Eu nunca vou, mesmo em nova nunca gostei. Prefiro ficar no meu canto, ver

um pouco de TV, ler um livro, uma bíblia. Meu marido é que gostava dessas festas.117 Chama-

se conjunto, quer dizer, pode ser o Estrela Africana, pode ser um grupo que é de Guadalupe e vem tocar aqui. Eu não gosto porque pegam na pessoa assim para dançar. Não há muito respeito […]. É coisas folclóricas, não gosto muito».

No dia seguinte, Rosa acrescentou: «eu gostava muito pouco de sair [muitos risos], sou sincera. Muito de vez em quando, saía com ele [o marido], para conjunto, que é isso que Joana foi com João, não é? Saíamos ali, para divertir, um bocadinho, dançávamos, depois vínhamos para casa. Ele gostava muito, diversões, festa, estar lá a noite toda, e eu não gostava. […]. Mas por exemplo, eu não ia deixar uma menina sozinha ir para lá ver aquilo que Joana foi ver com João. Lá tem gente de todo o tipo, de toda a raça, de toda a qualidade! Podiam muito bem, querer abusar de Joana! Vir buscar para dançar, para querer abusar de Joana! Não tá a ver? Eu não ia estar na cama e deixar as meninas lá naqueles ambientes! Porque se se deixa miudinhas de 13- 14 anos nessas coisas, já começa a haver muitas faltas de respeitos.Pegam, metem no carro, vão usar, fazer o que querem. Trazem de manhã, deixam na porta, isso não! A cultura antigamente era essa, e eu mantive essa educação».

«Ir para conjunto», seria uma questão «de gosto, de ´classe`» e também uma questão de género: os homens que vão assistir ao conjunto podem pertencer a diferentes classes/estatutos («tem misturas»), até ministros, até o marido de Rosa, porém as mulheres, se não forem bem

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Já tinha ido noutros anos, inclusive com Rui.

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Onde vivi em 2002.

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Entrevistei um dos vocalistas em 2014, todos autodenominados forros: há mais do que um vocalista, vão rodando e substituem-se uns aos outros, dos mais velhos aos mais novos.

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O homem forro pode ser jiquiti, até lhe fica bem, em conjunto ou fundão, o que aprofundo no capítulo seguinte.

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acompanhadas, por um homem de respeito, um irmão, um marido, por exemplo, serão classificadas por pessoas do estatuto de Rosa de «populares» e «usáveis».

Ou seja, uma «verdadeira senhora», respeitável, não iria sozinha «nem com qualquer pessoa» para ver um conjunto, caso o fizesse desrespeitaria o nome da sua família, e o do próprio marido. Relembro que Rosa ouvia sempre conjunto no rádio, para adormecer e ao longo do dia, uma vez que este tipo de música representa a forrosidade. Como descrevo ao longo do texto, observei práticas com valores ambíguos e cujo significado é contextual: ouvir conjunto no conforto do seu quintal, seria uma marca representacional de um estatuto valorizado, uma uestão de classe socioeconómica e de estatuto ético, mas de também de género, pois como já disse uma «senhora» não deverá assistir a esse tipo de música ao vivo, impensável se for sozinha ou insuficientemente acompanhada.

Relembro a primeira vez que Rosa colocou o rádio do lado de fora da cozinha, no quintal (no 1º dia em que lá residi não colocou), perguntando-me várias vezes ao longo do dia:

Rosa: «Não está muito ruído?»

Jaf: «Para mim não», respondia sempre.

Rosa, como veremos no capítulo que se segue, foi protagonista de um percurso de ascensão, distanciando-se do que considera os «forros populares», casando bem e sendo educada na cidade, importantes fatores para a sua ascensão estatutária. Ortner no seu livro Anthropology and Social Theory: Culture, Power, and the Acting Subject (2006) refere como em diversas

etnografias (de Gans a David Halle)118o foco de análise são os modos como a mulher assume

um papel fundamental em percursos de mobilidade, nomeadamente os masculinos, por via do casamento, em projetos de «(would be) mobility» (ibid:29). Ou seja, Ortner afirma, reportando- se, por exemplo, à obra de Halle (1984:161 in 2006:28-29) como seria muito comum em processos de ambicionada ascensão, a mulher surgir enquanto representante de certos valores da classe à qual – esta e o homem - ambiciona pertencer, nomeadamente à classe média, constituindo-se a mulher enquanto uma agente ativa impulsionadora desse processo. Rosa representa, como o fará Josefina, como se verá – em seu nome, do seu marido e de toda a família no seu quintal - o decoro, a educação, o saber ser e estar. Assim, e tal como refere Ortner, as práticas associadas a determinada classe - e/ou estatuto socioeconómico e étnico - surgem já não tanto, ou não só, enquanto escolhas de um certo lifestyle mas antes como «imposed pressure and constraint» (ibid:30), nomeadamente entre marido119 e mulher, no

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Referira-se por exemplo a obra de Herbert Gans de 1962, Urban Villagers ou o trabalho de 1984 de David Halle,

American Working Man, entre outras obras (ver Ortner 2006).

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sentido em que as imposições surgiriam não dos considerados «inimigos de classe tais como […] the rich, the politicians, the pampered sons of the middle class» mas precisamente «from the men´s own girlfriends and wifes» (ibid). As mulheres teriam de assegurar a manutenção de um estatuto conquistado que se temeria perder a qualquer instante, o que caracterizaria, segundo Ortner «[…] much of middle class culture [that] can be seen as a set of discourses and practices embodying the terror of downward mobility» (ibid:30-31. Itálicos meus). Assim a linguagem da classe/estatuto seria ativada também através de uma linguagem «das práticas sexuais, como através das linguagens do género e da etnicidade» (ibid). Como refere Ortner,as fricções entre homens e mulheres «had as much to do with their symbolic class alignments as with anything related to their gender roles as such […]. The displacements of class meanings into languages of gender and sexuality may take place at the level of discourse but discourse, as Foucault has insisted, is never divorced from real practices and real feelings» (ibid:39-41). No fundo, é isto que nos diz Rosa: haveria sempre a hipótese de uma menina de «classe» ser usada e abandonada à porta de casa, por ter ido assistir ao conjunto, e caso assim fosse, o que seria feito do seu futuro, da sua honra e do prestígio da família do quintal que representa? Desceria na escala social, certamente, até porque conjunto «tem mistura», como afirmou João, o que já não aconteceria com o género masculino. Também Rosa – como as mulheres a que se refere Ortner – foi protagonista de um franco percurso de ascenção e mobilidade, feito de aspirações permanentemente controladas, temendo-se sempre «deixar de pertencer», o que é bem exemplificado na sua recusa em «frequentar conjunto» ao vivo, um meio que a poderia como que contaminar, pelo «barullho» e pelos convites para dançar por parte dos homens presentes, manchando de algum modo o seu estatuto de senhora de casa e de família. Note-se que Rosa poderia - e deveria - ouvir o conjunto no rádio, aparelho que seria como que uma espécie de véu protector, assegurando a distância qb. face a certas práticas, nomeadamente auditivas.

No dia seguinte a eu ter ido assistir ao conjunto, Arlindo perguntou-me se tinha gostado, ao que respondi afirmativamente: «Gostou, Joana? Tem lá gente de todos os estratos sociais, tem políticos, tem ministros, todos […] eles cantam em ´dialeto`».120

O mesmo Arlindo que na noite anterior afirmara nunca ter ido assistir a conjunto, por não apreciar, tendo acrescentado que para além do mais não sabia dançar e se eventualmente o fizesse só o poderia fazer com a sua esposa. Afinal percebo que Arlindo já tinha ido assistir ao conjunto inúmeras vezes, ao contrário do que me dissera. Referiu, com entusiasmo, os vários nomes de conjuntos tradicionais: Sangazuza, África Negra, Leonense. Confidenciou que tinha no seu computador «muitas gravações antigas, inclusive de músicas dos anos sessenta, quando «os antigos falavam por metáforas», disse-me, visivelmente alegre por poder partilhar comigo esse gosto. A partir

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desse dia, depois do almoço ou do jantar, ficava a lembrar-se das letras de canções de conjuntos antigos, cantava-me as músicas que sabia, sendo que muitas das letras eram/são armas de resistência ao colono.121 Explicou-me que «muitas das letras dizem muito sobre situação do país, modo de se ser» e afirmou que gostaria que eu entrevistasse um músico, o Sr. Trigueiros «grande músico, crítico do governo colonial, primo de Rosa. Está em Portugal e é perseguido cá», referiu. Acabei por ir a casa de Arlindo ouvir as músicas antigas, no dia em que o entrevistei, tendo-as passado para uma pen, com a sua autorização.

Um dia, na galeria de arte da cidade, a CACAU,122 encontrei um casal bastante prestigiado nas ilhas. Estava a atua um grupo de bulaué,123 ao qual eu e Josefina tínhamos ido assistir. A senhora comentou connosco: «bom, vou lá para fora, não vou certamente assistir a todo esse barulho. Essa ´coisa` não é para os meus ouvidos», pelo que se percebe que «o barulho» é transversal às performances associadas a diferentes estatutos étnicos e constitui-se enquanto fronteira ou boundarie barthiana (1969).

3.15. «Keep while-giving» again: o rádio onde ouvirei conjunto

No início de 2014 anunciei que precisava de comprar um rádio, onde iria ouvir também «o meu conjunto», ao adormecer, como já referi. Rosa e Rui – Rui estava no quintal de Rosa, à minha espera - ficaram muito satisfeitos com a notícia. Rosa indicou que não comprasse «no mercado, não é de boa qualidade, é dos nigerianos, negócios deles […]». Rui concordou, acrescentando conhecer um sítio onde vendiam «rádios em condições» e que fazia questão de lá ir comigo. No dia seguinte, reparei num saco no seu táxi, a caminho das roças, no lugar que costumo ocupar. Rui tinha algo para mim: era um rádio vermelho, grande, com lanterna, microfone, dos que se usam nas «comunidades ou roças», uma vez que o rádio tem em si mesmo uma série de acessórios importantes para localidades sem luz. Não é um rádio, é um kit de sobrevivência, pensei radiante. Rui não aceitou o pagamento: fez questão de me oferecer o rádio onde ouvirei conjunto nos restantes 4-5 meses que passei nas ilhas. Achei significativo e muito simbólico ter querido ser ele a oferecer-me o aparelho onde ouvirei o conjunto, estilo de banda onde o seu pai tocou, bem como um dos seus irmãos. Foi aliás com Rui, que pela primeira vez ouvi conjunto, em 2004, num terraço perto da Trindade, já no quase no fim da minha viagem. Senti que foi um convite muito especial. O seu pai – uma vítima do massacre de Batepá, que tinha entrevistado - ainda era vivo e estava também a assistir, esperando a minha chegada. Era a

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O que talvez também terá tido a sua relevância quanto ao facto de não quererem que fosse assistir a conjunto, inicialmente.

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Na CACAU, espaço muito frequentado por turistas, ouvem-se normalmente mornas de CaboVerde, Cesária Évora, Lura, e também Jazz: «coisas calmas e distintas», disse Gustavo.

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Espetáculo de dança e canto, executado por homens e mulheres, de cariz «popular». Associado tanto a forros mais humildes, como a angolares. As letras relatam, muitas das vezes, histórias de amor e desamor, traições, desencontros, o dia-a-dia de um pescador ou vinhateiro, entre outros temas do quotidiano.

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única branca. Rui e o pai trajavam as suas melhores roupas e o cenário era muito respeitoso. Se seguir as hipóteses de Weiner, o fato de ser Rui - autodenominado forro com orgulho – a oferecer-me o rádio onde ouvirei conjunto, é sem dúvida, uma estratégia profunda de retenção: ofereceu-me o que considera profundamente seu e o representa, a si e aos seus. Não poderia ser «um nigeriano» ou um «outro» considerado gabon a vender-me um rádio para ouvir conjunto, o que é reforçado pela reação de Rosa.

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