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CAPÍTULO 3 NO QUINTAL DE DONA ROSA: APRESENTAÇÕES E O QUOTIDIANO

4.8. Da crioulidade; «Higiene; atraso, civilização»

No que diz respeito à valorização da europeidade na definição de são-tomensidade e forrosidade, invoco o discurso de Francisco,183 forro «com muito orgulho», que entrevistei em 2004 e em 2016. Este explicou que o que distinguiria um «são-tomense184 comum» de um membro da «elite forra» [palavras suas], seria o facto das elites estarem mais próximas da «europeidade», ao nível «de sangue e todo o comportamento», referiu, indicando uma série de costumes «certos», desde a língua – a importância de falar o «português correto», a indumentária «o modo de usar a roupa, até o modo de andar e de colocar as mãos […]. O traje é uma fusão, as mulheres é que preservam a maior parte desses valores, a saia e o quimono.185[O quimono] é um trajo de origem europeia, não é afro.186 […]. A definição do estatuto social, pode-se ver na forma de vestir um quimono e a manta, o xaile […]. E os homens, o clássico europeu, não há qualquer…hipótese. A camisa clássica, gravata, o corte da calça clássica, e retoma nalguns momentos muito específicos, os trajos africanos» (excerto de entrevista a Francisco em 2004 in Feio, 2008:44-45). A mulher surge mais uma vez como porta-estandarte dos valores ideais, sujeita a um controle social muito mais apertado. Ao homem é permitido «um deslize», à mulher não, o que Rosa personifica, como tenho vindo a demonstrar. Francisco explicou ainda em 2004, que existiriam diferentes estatutos sociais entre os forros: «os nobres, aqueles que têm posses e estatuto social, um conjunto de famíliasque têm nome», também conhecidos como «gente gordo».187 Segundo Francisco, seriam os forros de elite que fariam escolhas identificatórias «mais acertadas e certeiras» [expressões suas], escolhendo valorizar a europeidade. No seu entender, a identificação com África seria típica dos são-tomenses mais humildes, com menos recursos escolares, mais desfavorecidos que acabariam «[…] por se render a uma identificação com África ao verem-se enquanto negroides», o que se justificaria por «ignorância e falta de informação histórica», referiu (ibid).

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Tem 40 anos, reside em Portugal, é licenciado e de «classe média» no contexto são-tomense.

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Referia-se à categoria forro.

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Traje que Rosa usa, por exemplo, na igreja.

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Há inúmeros estudos efetuados no período colonial que procuram analisar, a partir de inúmeras manifestações socioculturais santomenses, a raiz europeia da são-tomensalidade. Inocência Mata (1998) focou-se nessa análise, debruçando-se, por exemplo, na obra do são-tomense Francisco Tenreiro, membro da elite crioula, sociólogo e geógrafo, que em A Ilha de São Tomé e Príncipe (1961) procurou definir a «crioulidade são-tomense» enquanto detentora de uma preponderante matriz europeia, em detrimento de uma mais «fraca matriz sociológica africana» (Tenreiro 1961:211 in Mata 1998:21). Tenreiro procurou, em toda a sua obra, «provar a componente portuguesa e europeia» como elemento estruturante da sociedade são-tomense (cf. Mata 1998 in Feio, 2008:47-50), o que nos remete para um quadro teórico luso-tropicalista, segundo o qual os portugueses teriam uma propensão inapta para a miscigenação com outros povos (cf. Freyre [1933] 1992:5 in Vale de Almeida, 2000:163).

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A aposta numa relativa gordura física, sinal de «valentia e poder», assim como um elevado culto do corpo caracterizaria «a ´cultura forra`, como referiram Espírito Santo (1998) e Francisco. Este último disse pretender regressar a viver nas ilhas, daqui a uns anos, onde pretende «engordar», simbólica e literalmente: «[…] uma barriguinha fica sempre bem, a um homem», disse.

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Os «populares», os que fariam barulho e ouviriam o rádio em alto volume, como disse Rosa, seriam os menos «europeizados» sinónimo de menos «civilizados». Francisco, reafirmou em 2016,188 o que considera ser a diferenciação entre os são-tomenses, sobretudo os forros, e os restantes africanos, tendo explicado que, no seu entender, os ´verdadeiros forros`, seriam os «crioulos de tendência social – e genética – ´europeia`»: «Meu deus, duma vez por todas: os santomenses são crioulos resultantes da simbiose racial e cultural da Europa (Portugal) colonial e dos povos africanos que se fixaram nas ilhas de São Tomé e Príncipe. Então a sua identidade é o resultado desta fusão. E ela não depende da cor da pele. O facto de os santomenses terem a pigmentação da pele mais escura, não obriga-os a sentirem-se mais africanos por este fator somente. Professores, famílias e encarregados de educação, ensinem e expliquem aos filhos das ilhas189que as suas identidades culturais são crioulas. Acabem com esse complexo e aprendam para sempre que os dois lados [europeu e africano] do cruzamento racial faz de nós o povo que somos apesar dos constrangimentos da história colonial», disse (itálicos meus).

Também Josefina sublinhou uma proximidade à Europa, em entrevista que me deu em 2014: «como a colonização durou muito tempo, acabámos por ter muitos hábitos europeus e não tão africanos, [os nossos] diferem dos hábitos dos africanos do continente. Mesmo os europeus quando vêm [cá], acham que nós temos muito pouco. Bom, eu nunca fui para…só fui à África do Sul e a África do Sul para mim é tipo Europa dentro de África, em termos de infraestruturas. Mas mantêm a sua identidade cultural, músicas, danças, uma certa alegria de viver» disse, reproduzindo uma conceção folclorizada de cultura, nomeadamente da «cultura mais «popular», que teriam «danças, volume e ritmos próprios», como os estereótipos referentes a uma certa «africanidade»: simples, pura, primordial e feliz, tantas vezes reafirmada nas ilhas sobre «os outros», afirmações ouvidas entre os são-tomenses e também entre portugueses e outros europeus residentes nas ilhas, quer como entre turistas. Esses «outros» seriam também os que teriam «menos higiene»: «Mesmo os cabo-verdianos, mesmo os descendentes, tem maneira de educar diferente a forro, diferente a cabo-verdiano, diferente a angolar. Por exemplo, angolar jovem acaba de comer, vai deitar. Forro já não, criança vai levantar, vai pentear, vai tomar banho. Há casas de angolar que criança pode dormir com roupa suja, com pé sujo», disse Rosa. Já os «cabo-verdianos depende. Pode haver uns de cultura…já mais civilizada têm boa maneira de educar, mas outros que ficam lá no interior, mais atrasados, já não têm.190 […] Angolanos eu não convivi muito, mas eu tive um primo que trouxe mulher de Angola, ai Joana, caramba, credo! Aquela mulher era uma matumba! Matumba é uma pessoa muito atrasadaaaaa! Não sabia

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Escreveu num site público.

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Sinónimo de «filhos da terra» ou forros.

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nada nada, nem falar, nem pentear um cabelo, já viste? Ela não teve uma orientação, uma família para lhe dizer ´você levanta de manha, você lava, esfrega as unhas, penteia o cabelo, lava a cara, lava os panos, faz a cama, para dormir limpa. Muita gente não tem essa cultura. Dorme

sujo, em cima de toda a porcaria. Antigamente diziam que os principianos191tinham medo quase

de gente, mas agora já não,cultura já está diferente. Pessoa batia à porta, eles até tavam em casa, mas não atendiam, ficavam a espreitar só daquele buraco, mas agora dizem que já é diferente […]. Moçambicanos quase não há, e não deixaram família. Há um ou outro no lar de idosos», disse Rosa, reificando um imaginário onde predomina o tópico do atraso e da menor civilidade de certas pessoas e categorias, associado a uma maior «africanidade»/primitivade.

Josefina referiu-se ao «modo de vestir são-tomense» enquanto próximo do modelo europeu. Recordemos, porém, que serão simultaneamente os europeus a usar a roupa mal passada, demostrando-se a ambiguidade categórica. Também falou sobre os cabo-verdianos, considerando-os também próximos de uma certa «europeidade», sublinhando transversalidades entre pessoas de diferentes estatutos étnicos. Referiu, porém, que estes últimos continuariam muito ligados ao trabalho braçal na terra, algo que lhes seria inapto e natural, como se mencionou atrás, identificação que alguns cabo-verdianos entrevistados, sobretudo os mais velhos, também adotarão para se definirem, a par de outras identificações, como demonstro no próximo capítulo»

Haveria assim, sobretudo entre os forros com um estatuto socioeconómico valorizado - mas não só - um investimento num conjunto de hábitos, práticas e modos de «estar/ser» que considerados próximos da europeidade ideal, referencial que coexiste com outros, inclusivamente aparentemente contraditórios. Esta proximidade diria respeito à procura de um estatuto mais valorizado - porém mais valorizado só às vezes, como se verá – que não estaria nunca completamente assegurado. Seria fundamental explicitar-se esse estatuto – a par dos outros, contextualmente - tornando-o hiper-visível, precisamente através do que se escolhe vestir, comer, falar, entre outras práticas, muitas das vezes relacionadas quer com o corpo, último reduto identitário, quer com o espírito, como demonstrarei. A valorização da identificação com a europeidade entre os forros de elite é aquela a que também se referem pessoas de outros estatutos étnicos e socioeconómicos, como por exemplo, o antigo capataz da roça Bernardo Faro, cabo-verdiano que foi capataz no tempo colonial, ou o «dotorê», descendente de angolanos, residente numa conhecida roça e que se apresenta enquanto «antigo moço de recados do branco», para quem trabalhou desde criança e cujas fotografias têm lugar de destaque na casa onde habita – a antiga casa do feitor. Seria devido a esta proximidade –

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ocupacional e estatutária - que Doutorê era Doutor. Sublinhe-se que este senhor tinha uma relação tensa com os habitantes das antigas sanzalas, para onde evitava ´descer`: «ir ter com essa gente, não gosto», sendo que pude testemunhar como estes por vezes o tratavam por «burro!», o que observei numa visita conjunta a toda a roça.

4.8.1. «Ser africano ´à moda da terra`»; ir ao banco «à moda da terra»

Como tenho vindo a referir, a par de uma proximidade à «europeidade», valorizam-se outras identificações, como certas práticas que associam à são-tomensidade enquanto integradora de referenciais «africanos», o que seria contextual.

Um dia, reparei no modo como Josefina se arranjara para ir ao banco, com extremo cuidado: levava um lenço na cabeça «à moda da terra» [expressão local], como usava a sua mãe - nunca tinha visto Josefina usar um lenço na cabeça - trazia um vestido comprido muito elegante e calçava umas sabrinas da moda, que comprara em Lisboa. Chuviscava, por isso também levava um grande guarda-chuva. Pensei em como nesse dia parecia estar a preparar- se para substituir a mãe, nas funções e no trajar: a maneira como falou com os empregados no jardim, que lá estavam a aparar a relva, o querer orientar tudo, era como se estivesse a desempenhar a performance de «uma senhora de respeito», uma senhora que impõe a ordem no seu quintal. Recordo aqui a minha ida ao banco com Rosa, depois de termos ido visitar avó Bibi. Escrevi: «Rosa passa pelo banco, perto do Instituto Superior Politécnico. Cumprimenta «muito bem» [expressão local] o funcionário, fazendo-lhe grandes elogios, depois de ter levantado o dinheiro ´diretamente192 nas suas mãos`».

Rosa: «Obrigadíssima! E onde está o meu calendário?», perguntou ao funcionário do banco.

Funcionário: «Não tem»

Rosa: «Não tem? E caneta? Tem de tratar bem cliente».

O funcionário do banco ofereceu-lhe então uma caneta. Rosa saiu do banco muito satisfeita, e comentou comigo como fora bem atendida e que como era necessário ser exigente com os funcionários, para estes «saberem como tratar pessoa», referiu. «Este é novo mas está a fazer bem coisa dele», acrescentou. Acabámos por ir a pé para casa, decisão sua, pelo que ia cumprimentando quem passava: «Como está, Senhor Professor?», fazendo-se ver.

4.8.2.«Pegar bebé nas costas no aeroporto, é bem africano»

Do mesmo modo que se valoriza o «vestir à moda da terra», também se investe em valorizar

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Em São Tomé existem multibancos há cerca de dois anos, porém ninguém que conheci levantava dinheiro diretamente nas caixas: «O quê? Ficar à espera que parede dê dinheiro?! Nem pensar!», referiram, por exemplo, Gustavo e Rui.

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práticas denominadas de «bem africanas». Nesse sentido, recordo um diálogo no quintal de Rosa. Josefina tinha chegado do trabalho e estava a preparar doce de coco, para enviar à prima em Portugal, encomenda que irá ser levada por uma rapariga que nos visitou mais tarde nesse dia, trazendo consigo o filho, um bebé com quem também viajará. Esta rapariga teceu comentários face ao excesso de peso que levaria, pelo que se conversava sobre a melhor maneira desta organizar as bagagens, até porque também transportaria o bebé. Rosa aconselhou-a: «enquanto espera mala, leva pano e ata bebé nas costas», disse-lhe em tom sério, acrescentando: «o que eu mais gosto é de pegar bebé com pano nas costas e vestir sanguê. Ela poderia fazer isso quando tá a pegar malas e nas escadas rolantes do aeroporto. Eu adoro. Até tenho uma foto no aeroporto com Josefina nas costas. É bem africano. Joana não acha?», dirigindo-se a mim.

Considero muito interessante Rosa afirmar-se africana através desta prática - mais uma vez a afirmação de africanidade/europeidade pelo corpo – e no contexto do aeroporto, em viagem, no caso para a Europa (Portugal), demonstrando-nos, mais uma vez, os modos como as identificações (étnicas, étnico-nacionais, de classe, entre outras) podem ser contextuais e múltiplas. Relembro a afirmação de Joana, em casa de Maria: «Em Portugal somos todos africanos, não é?». Saliente-se ainda como Francisco, em Portugal, se apresentou em exposições enquanto «artista africano», valorizando muitíssimo, nesse contexto, essa identidade. Ouvi-o ainda fazer referências à sua africanidade, no facto de «estar a deixar crescer barriguinha», como disse atrás, ou em relação ao facto de se poder ter várias mulheres, o que considerou cultural. A rapariga das encomendas, ficará 2 semanas em Portugal, onde irá comprar muitos bens, que irá enviar aos poucos para São Tomé, recorrendo aos serviços dos barcos. João encomendou um último modelo de um ótimo telemóvel e um relógio Cásio, tendo sido a sua irmã – de pai - que ficou de comprá-los, o que causou bastante confusão.193 Passemos à apresentação da avó Bibi, a quem Rosa visita, e que me apresentou toda a sua família, já morta, bem como recordou, nostálgica, os seus tempos de juventude em Lisboa.

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