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36 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO

i O Homem na Concepção de Homero

36 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO

está sujeito, desde o início (com o, por exem plo, na Eneida), ao querer! divino que tudo guia para um fim preestabelecido e importante. A;J ação que se desenvolve entre os homens não serve a um escopo supe-| rior; ao contrário, entre os deuses só acontece aquele tanto necessário^ a tornar com preensível o desenrolar dos acontecimentos terrenos, sem ^ que por isso o curso natural da vida terrena seja mudado. E talvez aj coisa mais admirável do mundo homérico esteja no fato de que, não"! obstante a vigorosa intervenção dos deuses, a ação e as palavras dosr homens continuem tão naturais.

Ah! o “natural” ! Várias vezes já apareceu essa palavra. Mas o que ■ é o “natural”? Até o espertalhão pateta do conto, que tudo aceitava: com o natural, se sentiria embaraçado para dar uma resposta. As teorias , modernas não poderiam fazer outra senão associar a idéia desse naturai' à do racional, ao passo que aqui a encontramos no campo religioso. E ;

nos poemas homéricos que esse “natural” aparece pela primeira vez no mundo, e precisamente assim: pondo-se a natural existência do homem em relação com o sentido profundo da existência divina; mas, visto que esses deuses não intervém na vida humana com a prepotência e com o absurdo terror, pode ela desenrolar-se tranqüilamente segundo sua pró­ pria e tácita lei. Ora, estando os gregos cheios de ingênua admiração ante um mundo significativo e ordenado, para eles valia a pena pôr em ação mãos, olhos e, mais que tudo, a inteligência. O mundo belo apre­ sentava-se a eles pleno de sedução e prometia revelar seu significado e sua harmonia. D o espanto e da admiração surgiu a filosofia num sentir do ainda mais amplo do que jamais o imaginaria Aristóteles15

H egel diz num certo ponto da Filosofia da História: “A religião é o lugar onde um povo dá a si m esm o a definição do que considera com o Verdadeiro”. E quando Platão aponta com o verdadeiro o Perfei-f to, “a idéia do B em ”, sobrevive nessa afirmação o pensamento funda- ^ mental da fé nos deuses do Olimpo. M esm o as artes plásticas dos gregos nos dizem que o mundo das aparências é belo e tem um senti­ do profundo, desde que o saibamos entender corretamente. E sób rete do surgiu na Grécia a ciência, fruto dessa confiança em que o nosso mundo seja racional e aberto ao pensamento humano: assim foi que os deuses do Olimpo nos tornaram europeus.

Essa fé não é otimismo iluminista. A antítese otimismo-pessimis- m o é banal demais para poder ter aqui algum valor; pelo contrário, os gregos poderiam dizer-se pessim istas. Falam da vida com profunda tristeza, porque os homens perecem miseramente com o as folhas de outono. E para além da vida, a tristeza ainda é maior. A vida poderá

15. Sobre o “estupor como inicio da filosofia”, ver Georg Misch, Der Weg in die

Philosophie, 2a ed„ 1, 65-104; cf., antes de mais nada, Plat., Teet., 155 D, e Arist., Met.,

37 ser serena ou triste, mas a mais alta beleza se encontra neste mundo, do qual surgiram os deuses com o a criação mais perfeita, mais bela e mais real. Para os gregos dos primeiros séculos, as misérias daqui de baixo encontram compensação no fato de que os deuses levam uma vida fácil e bela. Para os gregos dos séculos subseqüentes, a vida terrena en­ contra sua razão de ser no fato de poderem observar e admirar o curso regular das estrelas. Pois, se para Platão e Aristóteles a vida teórica e contemplativa é mais importante do que a vida prática e eleva o ho­ mem acima das coisas terrenas, essa “teoria” contém aspectos de um sentimento religioso que remonta ao BocopáÇeiv homérico. Indubitavel­ mente, os deuses foram as vítimas dessa progressão do pensamento em direção à filosofia. Foram eles perdendo sua tarefa natural e imediata à medida que o homem se tornava mais consciente de sua própria exis­ tência espiritual. Se A quiles explicava suas próprias d ecisões com a intervenção da deusa, o homem do século V carregava, na consciência de sua própria liberdade, também a responsabilidade das próprias de­ cisões; o divino, pelo qual ele se sentia guiado e perante o qual se sentia responsável, era cada vez mais determinado pelo conceito do justo, do bom e do honesto, ou qualquer que seja o nome que se queira dar à norma que rege a ação. O divino torna-se, assim, cada vez mais sublime, mas os deuses perdem ao mesmo tempo a plenitude de suas vidas, tão intensas na origem. Os processos contra os filósofos como Sócrates ocorrem nessa época e de­ monstram quão profundamente sentida foi essa transformação. Poder-se- ia, talvez, censurar Sócrates por haver-se afastado dos antigos deuses; mas num sentido mais profundo, continuava ele a servir os deuses do Olimpo que um dia haviam aberto os olhos aos gregos. E absurdo pensai' que Apoio ou Atena tenham considerado o “espírito” com o inimigo, e Aristóteles (Met., 983), como verdadeiro grego, diz que o deus não recusa o saber ao homem. Se, falando de hostilidade contra o espírito, quiser alguém respaldar-se no mundo grego, é mister que se reporte às obscuras repre­ sentações de potências ctônicas, de um culto marcado pela embriaguez e pelo êxtase; que nunca se refira, porém, às grandes obras gregas, à épica, à poesia de Pindaro ou à tragédia.

Os deuses do Olimpo morreram com a filosofia mas sobrevive­ ram na arte. Permaneceram com o um dos grandes temas da arte, mesmo quando a fé natural se havia apagado; melhor ainda: encon­ traram sua forma mais perfeita e mais determinante para as idades futuras som ente a partir da época de Péricles, ou seja, quando os artis­ tas certamente já não eram mais crentes, no sentido antigo. Também a poesia antiga, até os primeiros sécu los da era cristã, extrai seus principais assuntos do mito dos deuses do Olimpo. E quando estes ressurgem com o Renascimento, é na arte que isso acontece.

O caráter significativo e natural dos deuses olím picos não reside apenas na sua intervenção, de que até agora nos estivem os ocupando

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