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26 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO

i O Homem na Concepção de Homero

26 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO

grega. A

àaépEicc,

punível com a morte, é uma ofensa às coisas sagra­ das: áaepfiç (asebes) é, por exem plo, quem subtrai as oferendas votivas, quem danifica as imagens sagradas, profana o templo, divulga os se­ gredos dos mistérios e assim por diante. A os filósofos era im possível, evidentem ente, imputar coisas do gênero.

O sentido das perseguições por asébeia só se pode explicar com o auxílio de outro conceito grego. Conhecem os o texto do auto de acusa­ ção contra Sócrates. Nele, segundo a tradução mais comum, declara-se: Sócrates é culpado de não crer nos deuses nos quais a cidade crê e de introduzir outros e novos deuses. A palavra, que nessa frase é traduzida por “crer”, é vojaíÇeiv (nomízein). Na lei, com base na qual Sócrates foi condenado, essa palavra devia constar: “Quem não vojtí

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biosdeuses da cidade, é condenado à morte”, o que, traduzido com muita aproximação, significa: “quem não crê nos deuses da cidade” Com a palavra vojxí

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eiv os atenienses do ano 399 entendiam: julgar verdadeira a existência dos deuses. Sócrates, opinavam eles, nega a existência dos deuses; e, por intermédio de seu demônio, essa sua estranha voz interior, quer intro­ duzir novos deuses, “novos dem ônios” que deveriam substituir os an­ tigos. Ele, portanto, não era apontado com o descrente ou herege, e sim com o negador dos deuses. Também por essa razão, tal acusação não pode estar de acordo com as velhas concepções religiosas, visto que o conceito da inexistência dos deuses só pôde, de modo geral, m anifes­ tar-se por volta do século V e só o encontramos claramente expresso no sofista Protágoras. É, porém, verdade que, m esm o antes, uma lei podia sujeitar a penas severas aqueles que não vopAÇoucnv os deuses. M as então vopAÇeiv significa “julgar digno, estimar”, com o nos diz a palavra vóp iopa (nómisma), derivada de vopíÇeiv. vójiiopa significa o que é digno, que tem valor: por exem plo, a moeda, o latino numismo, do qual deriva nossa palavra “numismática” E de fato, Ésquilo em ­ prega aquela quando fala de quem não respeita os deuses, isto é, de quem não se importa com eles3. A lei que prescrevia “respeitar os deu­ ses” era, antes de tudo, interpretada com o uma proibição de cometer atos de manifesta asébeia, isto é, sacrilégios, mas por outro lado tam­ bém era lida com o uma exortação a participar das manifestações reli­ giosas oficiais, tanto que os amigos de Sócrates puderam declarar ex­ plicitamente em sua defesa que ele sempre havia cumprido os sacrifí­ cios rituais. Essas normas, vigentes na Grécia ao tempo da primitiva vida religiosa, não diziam respeito, de maneira alguma, às crenças, e muito m enos às profissões de fé, aos dogmas e coisas do gênero. So-

3. Pers., 498: ver tambémEur., A/er/., 493. Sobre 0eoí)ç vopíÇeiv, ver K. Latte, Gnomon,

1931, 120; J. Tate, Cl. Rev., 50, 1936, 3 e 51, 1937, 7, Cf. ryyEi 0eo\>ç, Aristóf., Eq.y 32. O processo contra Protágoras é evidentemente uma lenda: Plat., Men., 91 E; mas cf. E.R. Dodds,

mente durante um breve período, quando o ilum inismo filosófico pa­ receu destruir a ordem estável da sociedade humana, é que ocorreram perseguições contra os negadores de Deus, e somente em Atenas. Mas para condená-los foi mister que, sem se aperceberem disto, atribuíssem a uma palavra da antiga lei um sentido que ela, na origem, não tinha; e uma história da língua, que teria podido salvar Sócrates, não existia na época. M ais uma vez vam os ouvir, agora já na antigüidade mais tardia, falar de intolerância religiosa, a saber, no tempo das persegui­ ções contra os cristãos. Mas nesse caso, não era a fé que tinha impor­ tância para os pagãos; os cristãos são perseguidos sobretudo por recu­ sarem-se a tomar parte no culto oficial, em especial no culto ao im pe­ rador e, portanto, nas cerimônias do Estado. Jamais se exigiu dos cris­ tãos que renegassem sua fé, mas apenas que participassem das prescri­ tas cerimônias de culto. A recusa dos cristãos, porém, advém do fato de que, para eles, a religião é um ato de fé e de sentimento.

O que era, portanto, a religião grega? Por ventura é no culto que se acha a sua essência? E o culto, sem isto que chamamos de fé, é talvez algo que difere da magia, isto é, da tendência a forçar a divin­ dade a dobrar-se ante o querer humano por m eio de antigos e sagra­ dos encantamentos? Mas então retornaríamos exatamente àquele som ­ brio terror do qual a religião olím pica parece ter-se afastado. Ou será que a mais profunda necessidade religiosa dos gregos se m anifestou apenas nos mistérios de Elêusis e de Samotrácia ou naquelas seitas dionisíacas, órficas ou pitagóricas que alimentavam esperanças de redenção e expectativas de uma vida feliz após a morte?

Na realidade, a partir do Romantism o, foi nessa esfera que se buscou a verdad eira r e lig io sid a d e d os g r e g o s, p o is, en q uan to Winckelmann e o “clássico” Goethe haviam visto os deuses do Olimpo mais como personificações de uma fantasia artística do que com o ver­ dadeiros objetos de real veneração, Creuzer quis procurar as mais genuínas e profundas forças religiosas dos gregos nas obscuras esfe­ ras do sim bolism o, do m isticism o e do êxtase, embora, assim fazen­ do, tenha voltado a transpor para a época clássica e pré-clássica m ui­ tos elem entos do mundo antigo mais tardio4 A partir de então é que se discute se também diante dos deuses do Olimpo, que, frente a todos os mistérios e a todas as formas tônicas e extáticas do culto, são os verdadeiros deuses pan-helênicos e “clássicos”, reinantes na poesia e nas artes plásticas, não existiria uma atitude que poderíamos, ainda que com decisivas m odificações, chamar de “fé ”5. Não há dúvida que

4. Ver Walter Rehm, Griechentum und Goethezeit, 1936.

5. Em tempos mais recentes, foi sobretudo Walter F. Otto quem procurou represen­ tar o conteúdo religioso dos deuses olímpicos: Die Götter Griechenlands, Bonn, 1929 (3a ed., Frankfurt am Main 1947). Cf. também K. Von Fritz, “Greek Prayers”, “Rev. o f

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esses deuses olím picos são algo mais do que o produto de um espírito \

brincalhão ou m esm o frívolo, embora para nós, educados nas concep- j

ções de fé e de religião do N ovo e do Velho Testamento, não seja:: realmente fácil entender-lhes o sentido. A os gregos pareceria estra-'1

nho o m odo com o Gedeão, no Livro dos Juizes (6, 36-40), conversa j com seu Deus: Gedeão quer entrar em guerra contra os medianitas e 3

roga a Deus que lhe conceda um sinal de sua proteção; ele porá uma pele sobre a eira e, na manhã seguinte, a pele deverá estar úmida de : orvalho e a eira, ao redor, enxuta. Isso será 0 testemunho de que Deus ; não o esqueceu. Deus cede a Gedeão e atende em tudo seu p ed ido.; Mas Gedeão roga de novo a Deus: desta vez é, ao contrário, a pele que , deve permanecer enxuta e a eira úmida. A graça revela-se, assim, na , subversão da ordem natural das coisas: para Deus nada é impossível, Também no mito grego acontece de os heróis pedirem um sinal visí­ vel da assistência divina, mas os sinais, nesse caso, são o raio, 0 vôo de um pássaro, um espirro, coisas, todas elas, que, segundo as leis da verossim ilhança, não se pode admitir que ocorram justam ente no momento desejado, mas das quais sempre se poderia dizer que ocor­ reram por um feliz acaso (àyaôq Mas que o postulante peça, sem mais, que a ordem natural seja invertida, com o pretende Gedeão, e que se fortaleça a fé com o paradoxo, isso os gregos não podem ad­ mitir. O dito atribuído a Tertuliano “Credo quia absurdum” não é grego, e contrasta m esm o com a mentalidade greco-pagã6 Segundo a concepção clássica grega, até m esm o os deuses estão sujeitos à ordem do cosm os, e eles, em Homero, sempre tomam parte na ação do modo mais natural. Até quando Hera obriga H élio a mergulhar, veloz, no oceano, o fato permanece “natural”, pois H élio é apresentado como um auriga que, por uma vez, pode muito bem fazer seus corcéis corre­ rem mais rápido do que de costume. Certamente esta não é uma ma­ gia que tenta subverter a natureza. Os deuses gregos não podem criar do nada (não existe, por isso, entre os gregos, uma história da cria­ ção)7; não podem senão inventar ou transformar. Poder-se-ia quase dizer que 0 sobrenatural atua, em Homero, segundo uma ordem pré- estabelecida. Pode-se m esm o fixar regras, segundo as quais os deuses intervém nos acontecimentos da vida terrena8

Religion”, 1945, 5 e ss.; e mais os livros de H. Frankel e E.R. Dodds, cit., na p. 29, nota.

6. Ao contrário dos gregos, que, da idéia de um cosmos ordenado deduzem a exis­ tência de Deus, para os cristãos, essa existência revela-se através do paradoxo. Ver, por exemplo, Pseudo-Atan., Quaestiones ad Antiochum, c. 136 (Migne, XXVIII, 682).

7. Ulrich von Wilamowitz observou, amidde (por exemplo em Platon, 1,601), que não pode surgir uma ciência natural onde existe a crença na criação do mundo.

8. Sobre o milagre em Homero, cf. H. Frankel, Die homerischen Gleichnisse, p. 30; Dichtung und Philosophie, pp. 91 e ss.

Em Homero, os deuses promovem todas as mutações. A Ilíada tem inicio com a peste mandada por Apolo; Agamêmnon é induzido a resti­ tuir Criseida e, ao tomar para si, em compensação, Briseida, provoca o desprezo de Aquiles. Desse modo é encaminhada a ação do poema. No início do segundo livro, Zeus manda a Agamêmnon um sonho engana­ dor para prometer-lhe a vitória e induzi-lo à batalha; o que é ocasião de lutas e infortúnios para os gregos. E assim vamos em frente. N o com eço

éà Odisséia, temos a reunião dos deuses, na qual se decide o retorno de Odisseu, e os deuses continuam intervindo até que, por último, Odisseu, com a ajuda de Atena, mata os pretendentes. Duas ações desenvolvem- se paralelamente: uma no mundo superior dos deuses, a outra na terra, e tudo o que sucede aqui embaixo acontece por determinação dos deuses.

A ação humana não tem nenhum início efetivo e independente; o que é estabelecido e realizado é decisão e obra dos deuses. E, já que a ação humana não tem em si o seu princípio, muito m enos terá um fim próprio. Só os deuses agem de m odo a alcançar aquilo que se propu­ seram; e se até o deus não pode levar a bom termo todas as coisas, se a Zeus, por exem plo, não é concedido salvar da morte o filho Sarpédon, ou se Afrodite chega m esm o a ser ferida em combate, pelos m enos poupa-se a eles a dor dos homens, condenados à morte.

Essa vida superior dos deuses confere um sentido próprio à exis­ tência terrena. Agamêmnon parte para a guerra e quer vencer, mas Zeus de há muito estabeleceu que os gregos devam ser derrotados; e assim, tudo o que os homens realizam, com fervor e paixão, pondo em jogo até m esm o a vida, é guiado pela mão ligeira dos deuses: seus propósitos se cumprem e só eles sabem com o todas as coisas irão terminar. Essa ação dos deuses na epopéia homérica foi batizada de “máquina divina”, com o se o poeta pudesse fazer intervir os deuses a seu talante, com o se se tratasse de um artifício poético para repor em movimento a ação bloqueada.

Na antiga epopéia mais tardia essa “máquina divina” petrificou- se de tal forma que Lucano pôde elim iná-la9, se bem que seus contem ­ porâneos o tenham reprovado por isso. Mas certamente não depende do arbítrio do poeta homérico estabelecer quando os deuses devem entrar em cena; porque, pelo contrário, eles intervém nos m omentos em que a “máquina divina” é de todo supérflua, pois o deus não inter­ vém para justificar uma ação dificilmente justificável mas exatam en­ te ali onde, para a consciência moderna, a intervenção do deus é ele­ mento perturbador de uma ação sim ples e corriqueira.

N o início m esm o da R iada, quando explode a contenda entre Agamêmnon e Aquiles, Agamêmnon pretende a restituição de Briseida

9. Para ele, de resto, também o mundo perdeu seu significado, Cf. Wolf H. Friedrich,

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