O Hino Pindàrico a Zeus
91 Pindaro criou uma imagem que capta perfeitamente o caráter de
sua poesia (A., 7, 77): “A Musa une o ouro ao claro marfim e à flor- de-lis, tirada da espuma do mar” A ssim vai ele juntando pedaço a pedaço de sua canção com elem entos preciosos, passando de um para outro, de maneira tal que daí resulte uma com posição em m osaico onde sempre retornam o ouro, o marfim e o alvo coral (isto é, “a flor- de-lis, tirada da espuma do mar”). Freqüentemente ele compara sua poesia ao entrançado de uma guirlanda. Assim com o na guirlanda, as partes que a com põem ora desaparecem ora reaparecem, daí resultan do um alternar de acordes e contrastes, assim também em Pindaro afloram no poema, esparsos e divididos, temas que são, todavia, com postos para serem vistos em seu conjunto. Um detalhe totalmente e x terior poderá dar-nos uma demonstração disso: no epinicio, é mister fornecer certas informações sobre o vencedor, isto é, seu nome, nome de seu pai, nome da cidade natal. Pindaro, ao contrário, gosta de dis tribuir essas informações de tal m odo que, por exem plo, o vencedor é indicado primeiramente com o nome do pai, depois com o seu próprio e só, no fim, com referência à sua pátria. Fornece ele, assim, os dados necessários e, ao m esm o tempo, evita as repetições. O m esm o pode mos dizer em relação aos outros temas de epinicio: o mito, a sentença e assim por diante; eles afloram, desaparecem para dar lugar a outro tema, reafloram, na aparência espontaneamente, por disposição casual, mas, na realidade, subordinados ao conjunto. Pindaro pode usar essa forma decorativa porque lhe interessa som ente dar relevo a certos aspectos da realidade; não se im porta em fazer uma d escriçã o continuada e precisa dos acontecimentos, não se direciona para um fim determinado nem busca o desenvolvim ento de um pensamento ou coisa que o valha. Já o seu modo de conduzir o pensamento mantém viva a impressão de que cada pormenor esteja ligado ao conjunto, pois essa forma de representação é uma imagem fiel do mundo com o ele o vê. Todavia, as diversas partes não constituem membros subor dinados a serviço de um todo orgânico, com o na tragédia, onde cada cena e até cada frase é determinada pelo fim para o qual tende a ação, quer seja usada para promover a ação quer para criar contrastes (o que facilita bastante a colocação dos fragmentos de uma tragédia per dida). Essa é uma característica arcaica da arte de Pindaro que vam os encontrar também nas artes plásticas da era pré-clássica. M esm o na composição das decorações dos vasos de figuras negras, por exem plo, a tendência de preencher o espaço sem intervalos, de praticamente entretecer as figuras com o fundo e ordená-las, com o no estilo herál dico, de forma ornamental, predomina sobre a tendência de construir, com figuras distribuídas organicamente, um grupo independente do fundo. Isso vale até para a representação do corpo humano: cada ór gão permanece distinto na sua perfeição, destacado, com nítido con-
92 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO... % torno, do seu próximo, e ainda que esses membros, representados enü movimento, irradiem uma intensa vitalidade, não se incluem no jogo harmônico do conjunto; suas formas não são, de modo algum, alterada; e condicionadas pela pressão e pela atração das outras partes do corpos nem pelo peso ou pela resistência externos (cf. supra, pp. 17 e ss.). * Pindaro permaneceu fiel a essa tendência arcaica, embora se te-í nha mantido em atividade até m eados do século V. N ele não encon-;; tramos, nesses cinqüenta anos de criação de que agora nos ocupamos,?, uma evolução estilística semelhante à realizada por seu contemporâ-í neo Esquilo em Atenas. Seu m odo de desenvolver o pensamento já- permite que as imagens se disponham com naturalidade em composi^ ç õ e s de e s tilo g eom étrico: c o m p o siç õ e s em anel, entrançadosf- paralelismos, contraposições. Esse caráter decorativo é valorizado ao m áxim o pela forma métrica. N unca mais o mundo conheceu uma poesia que, com o a de Pindaro, tão severamente se subordinasse à medida e ao número das livres variações, nem que tanto exigisse da. arte da versificação, da métrica. Da arte poética de Pindaro só se pode falar, de resto, sobre o texto grego, visto que suas bases são estranhas ao nosso senso rítmico. N o verso alemão, alternam-se, segundo deter minadas regras, sílabas acentuadas e não acentuadas. N o grego, ao contrário, o verso é formado pela seqüência ordenada de sílabas lon^ gas e breves, coisa para a qual já perdemos o ouvido. Podemos, quaná do muito, incluir as sílabas longas e breves num esquem a métrico e/> assim, reconstituir determinadas variações, mas o que deu vida a es ses esquemas, isto é, o som rítmico, continua para nós um mundo fechado. É com o se, nas notas que com põem uma fuga de Bach, dés sem os relevo a correspondências e variações, sem delas receber o som com o ouvido para o qual foram criadas.
Pindaro forjou para si uma métrica própria, que alguns de seus contem porâneos tentaram imitar, m as que morreu com ele. Apura aquele jogo de ressonâncias e variações, que a mais antiga lírica coral havia iniciado, e o perfaz com audaz grandiosidade. Vemos, assim, repetirem-se, com severa regularidade, grandes construções estróficas, formadas de partes isoladas que com eçam com versos com o os queja usavam os poetas mais antigos, mas que são, em seguida, variadas com o num caleidoscópio, por m eio de acréscimos, abreviações, des locam entos. N ão seguiu a direção ática que levava a metas inteira m ente diversas. Já os coros da primitiva tragédia grega recorrem a variações para passarem de uma forma de verso para outra, para sol tarem-se da rígida construção de um determinado andamento do ver so e, assim, chegarem, com um livre tratamento do tema, a uma cons trução orgânica da estrofe. D aí se passa, na tragédia mais tardia e na nova forma poética do ditirambo, para a construção de vastas compo sições poéticas numa forma métrica livre. Mas visto que essa constru-
93 ; ção métrica estava, em toda a lírica grega e, particularmente na coral,
apoiada na música, e visto que da m úsica do tempo mais antigo nada conhecemos, jamais poderemos ir além de vagas conjecturas acerca do caráter particular da métrica pindàrica. A única coisa que pode mos observar é que também ela devia ter o m esm o caráter decorativo i f adotado pelo andamento do pensamento e que, portanto, também a ; forma métrica devia estupendamente adaptar-se a seu m odo de ver as
coisas e a seu pensamento.
Mas essa não é a última palavra sobre a arte de Pindaro. O jogo das formas não é para ele um fim em si m esm o, ele não dá ênfase às relações do mundo apenas pelo prazer de descobrir o rico entrançado das formas de existência, mas, para ele, o valor de cada coisa deriva de uma realidade superior. Se as Musas, durante as núpcias de Cadmo, cantam as núpcias de Zeus, elas assim sublimam a festa do m ítico rei de Tebas. Se no mundo dos deuses, o último m atrimônio de Zeus assinalou a instauração da ordem entre os deuses e os homens, com a união de Harmonia e Cadmo, essa ordem chega também à terra. En quanto canta essas coisas diante dos tebanos, o coro de Pindaro subli ma e consagra a cidade deles e, ao m esm o tempo, exorta-os a aterem- se à ordem e aos pios costum es dessa tradição veneranda. O sábio poeta descreve o divino, que em tudo penetra, que de Zeus se irradia sobre a mítica Cadmo até a Tebas do seu tempo, e, ao revelá-lo, exal ta-o. As coisas sujeitas ao tempo são partícipes do D ivino e é tarefa do poeta revelá-lo.
Se Pindaro apresenta D elos com o um astro do céu, não se trata apenas de uma figura poética, de uma imagem com fim em si mesma; essa imagem foi criada com o escopo de celebrar D elos. Se Pindaro diz de uma ilha que ela é um “astro radiante”, isso já é um louvor, e maior ainda será a glória se D elos for, para os deuses, definitivam en te uma “estrela brilhante” Quando Heráclito enfatiza as permutáveis influências entre deuses e homens, ele o faz em relação ao conheci mento, ao passo que em Pindaro tudo ocorre no campo da prática, na forma ativa da louvação. Outra diferença está no fato de que, para Pindaro, o D ivino ainda se revela de forma imediata, evidente, pode ser percebido diretamente em seu esplendor, ser concebido com o rea lidade mítica, enquanto que, para Heráclito, torna-se abstrato, liber ta-se do mundo perceptível. A harmonia “in visível” vale mais para ele do que a visível. A mbos tendem, porém, a alcançar o D ivino em sua unidade; Heráclito procura captá-lo e entendê-lo por m eio do Pen samento; Pindaro, imbuído de religiosidade, contem pla-o e quer ape nas exaltá-lo. Exatamente por isso, um é filósofo, e o outro, poeta.
Quando um poeta cristão entoa o seu Te Deum, já não contem pla a obra de D eus com a m esm a sim plicidade de Pindaro; e quando Hölderlin, seguindo o cam inho aberto por Pindaro (embora na sua
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poesia ecoe a exaltação cristã de D eus), faz da celebração o objeto déj seus hinos, ou quando, para R ilke, que por sua vez se reporta ai Hölderlin, mas com uma marca cristã ainda mais decidida, o poeta di “aquele que tem a tarefa de cantar a louvação”, o objeto dessa louva*¿ ção já não se apresenta de modo lím pido e claro aos seus olhos. A nri bos consideram tarefa do poeta buscar esse objeto; e já por isso, a{ louvação não pode ser tão espontânea e natural com o na era gregar arcaica. Pindaro deve a seu tempo o fato de ter conseguido exprimir a . louvação de forma tão pura e perfeita com o jam ais o fez nenhum' outro poeta da Europa. E visto que, para ele, o D ivino é esplendor que se irradia sobre o mundo das aparências, visto que, nele, a alegria dos sentidos pela variedade das coisas ainda não é perturbada pelo pensa mento de que seu verdadeiro significado se acha além do mundo visí vel e só pode ser captado no pensamento, exatamente por isso sua visão das coisas é tão poderosa e segura, e sua expressão, tão genuína e viva. Mas num certo sentido, o mundo das aparências é problemáti co também pare ele, na medida em que ele não mais sente aí o Divino com o algo de natural, com o algo que deve ser revelado pelo “sábio” que lhe descobrirá o valor. Só no ímpeto do pensamento é que pode m os chegar a ele, e é isso que confere a Pindaro aquela entonaçãq solene que o distingue de todos os outros poetas da primeira era gre-t ga, e confere particular grandiosidade à sua louvação. A o chegar a seu ocaso, essa poesia resplandece com particular luminosidade.
N em todas as coisas participam do D ivino em igual medida; para quem sabe ver fundo nas coisas, ele se apresenta nas expressões mais altas das diferentes espécies; no ouro entre os metais preciosos, no delfim entre os peixes, na águia entre os pássaros, no rei e no vence dor entre os homens. Pindaro com eça assim a sua quinta Ode Istmica: “Mãe do sol, Téia dos muitos nomes, por tua causa os homens mais que tudo estimam o poder do ouro” e continua: “com a honra que vem de ti, adquirem eles fama e glória em toda forma de disputa” Procura ele aqui apresentar, em forma de divindade, o princípio que dá valor às coisas mais excelsas (essa é a característica da m itologia de Pindaro; embora ele, por sua vez, com isso se reporte a H esíod o13, e chame ä esse ser de Téia, isto é, sim plesm ente de: a Divina. Isso nos lembra, por exem plo, o esforço de Ésquilo para superar os “muitos nomes” dos deuses (cf., por exem plo, Prom., 212; Ag., 160)14; som os prepara dos, assim, para a abstração teorética, só que, para Pindaro, essa Téia é “mãe do so l”; por ela, portanto, o sol resplende e aquece e é através do sol que esse elem ento divino se revela do modo mais puro. Mas ela
13. Cf. H. Frankel, Die Antike, 3, 1927. 63; Dichtung und Philosophie, 619. 14. H. Schwabl, W. St., 66 ( 1953), acertadamente, coloca também Parmênides nes sa conexão.
é também Téia “dos muitos nom es”, apresenta-se sob diversas formas e pode ser citada e exaltada sob diversos nomes.
Safo (fr. 65a) já dissera, num poem a seu da maturidade, que o amor pelo sol mantinha viva, nela, a alegria pela beleza do mundo. Nos mais de cem anos que separam Pindaro de Safo, essa particular religiosidade da era arcaica, que concebe com o divino o esplendor do mundo, vai-se apagando na Grécia, e Pindaro já surge com o uma figura solitária num mundo mudado. Sente-se ele, assim, obrigado, por vezes, a defender-se, a sustentar seu ponto de vista e é levado por uma espécie de ardor apologético a especulações teológico-m itológi- cas semelhantes àquelas desenvolvidas por seu conterrâneo H esíodo no início da era arcaica: também interiormente uma severa austerida de liga os dois representantes, o precursor e o aperfeiçoador dessa rica e multifacetada poesia pré-clássica.
Hesíodo situa-se entre a idade da épica e a da lírica. Da épica ele se distancia sobretudo pelo seu novo senso da realidade. Na sua dura vida de camponês e de pastor, com eça a parecer-lhe dúbio o mundo do mito heróico que ele cantara com o rapsodo, e isso o faz soltar-se para o mundo real que o circunda. Já não vê o D ivin o apenas na esfera aristocrática dos Olím picos, que se intrometem a seu bel-pra zer nas empresas dos reis e dos heróis, mas procura captá-lo sistem a ticamente e com precisão no seu eterno manifestar-se. É assim que chega a seu sistem a teogônico; mas ainda está ligado à tradição épica, na medida em que representa esse sistema não tanto com o algo de eternamente presente mas com o algo que se realizou no tempo.
Suas Musas cantam o presente, o passado e o futuro, o devir dos deuses e, em seguida, o devir do mundo vivente e dos seus valores. Também em Pindaro as Musas cantam a saga épica da formação gradual do mundo, mas elas foram criadas para uma tarefa que não pertence à épica e sim, à lírica, isto é, a de exaltar a beleza das obras de Zeus.
N o período que intercorre entre H esíodo e Pindaro, desenvolveu- se na lírica da era arcaica o senso do dissídio no mundo da alma, da multiplicidade das relações do espírito, da lim itação dos valores. Pindaro não fala, com o muitos líricos arcaicos, de seus sentim entos pessoais, de seus laços espirituais com outros homens, não discute sobre os valores, lim ita-se a representar objetivamente aquilo que, no mundo, lhe parece digno de louvor; as formas do D ivino que ele d es cobre, a participação do particular no universal e no duradouro, do mundo no sobre-humano. A ssim , o mundo por ele representado ad quire aquela nova dimensão que os poetas da geração precedentes haviam deixado entrever, ainda que ele não esteja diretamente ligado a eles. O que foi descoberto na lírica “individual” arcaica (cf. supra, p. 56) ele o faz frutificar (e essa é, em essência, a sua obra) no campo da poesia celebrativa, nascida do canto ritual. Pindaro descobre, no