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70 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO

na Lírica Grega Arcaica

70 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO

agita-se em seu peito, tudo ocorre de m odo bem diferente de quando. Arquíloco se volta para o seu Gupóç. Para Homero, o Gupóç - e assim também o coração - é apenas um órgão dos m ovimentos espirituais^ que não se diferencia substancialmente dos órgãos físico s19 O fato de que os líricos concebem o mundo da alma sob uma nova forma é naturalmente difícil de demonstrar quando se tenta neles buscar as palavras alma e espírito, visto que para isso não é suficiente o material fragmentário de que dispom os, e talvez essa nova concepção ainda, não fosse para eles tão clara e determinada a ponto de levá-los a no­ vas definições em relação ao mundo da alma20. Mas mesmo das frases; isoladas podemos, com segurança, deduzir que os líricos já não expli-; cavam a alma por analogia com os órgãos físicos. Já quando Arquíloco^ diz que o seu Gopóç “está sufocado de dor” ou então que seu capitão tem “muito coração”, emprega expressões que Homero ainda não co­ nhece e que se referem a uma concepção abstrata do mundo da alma21 Mas é em Safo e Anacreonte que se manifestam os sintomas ainda: mais característicos dessa evolução.

A contradição do sentimento m anifesta-se neles não apenas como uma vicissitude no tempo, com o uma alternância de calmaria e tem­ pestade, de felicidade e infelicidade, mas com o dissídio no momento presente. C onhecem os já o verso de Anacreonte: “A m o de novo e ainda assim não amo - deliro e não deliro”

Aqui o amante infeliz exprime seu desânimo e seu dissídio inte­ rior de forma paradoxal, dado que afirma e nega uma m esm a coisa. É a uma experiência semelhante que ele se refere quando diz que Eros o abrasa e em seguida o imerge na água gélida da torrente. Esse estado de ânimo já fora expresso por Safo de forma igualmente paradoxal mas ainda mais eficaz ao falar de “Eros doce-am argo” Não se tratava de uma frase feita, visto que a imagem, hoje com seus dois mil e quinhen­ tos anos de uso, tinha, então, viço e eficácia. Esse dissídio do sentimen-

19. Cf. supra, p. 15.

20. Mas para a palavra vonç, cf. o que se disse a propósito de Safo na p. 176. 21. Fr. 60: mpÔíriç TtXécoç: para Homero, o coração é o órgão do corpo no qual se situa a coragem. //., X, 244: on 7iepi p.ev Tipótppcov Kpa5vq m i Gojióç àyf|vcop èv návteooi Tióvoiai; XII, 247: on yàp to t Kpaôíq p.eve5r\ioç oò5è jj.a%np.ü)v; XVI, 266: Mnpjiiôóveç KpaStnv m i 0np.òv e%ovx£ç; XXI, 547: èv p,év oí KpaÔíri Gápaoç ßaXe. Também temos, porém, em Homero, a concepção de que o homem ou as suas tppéveç possam ficar cheios de Gápooç, jxevoç ou de àXicr\: //., XIII, 60 ápcpoxépcú 7tXnoev P-éveoç; XVII, 573: t o í o v ptv Gápoenç k\t\gevtppévaç; 1,104: géneoç Ôe \xzya tppéveç àptpi jxéXaivai mp.7tXavto; XVII, 499: ccXtcfiç m i aGéveoç 7iXíYco <ppévaç àjitpi peXaívaç; XVII, 211 : TtXfjaGev 5’ a p a oí jiéXe1 èvròç àXKriç m i aGéveoç.

Quando, em Arquíloco, o coração passa a tomar o lugar de tais “forças”, o poeta usa para indicá-lo a palavra mp5iri em sentido abstrato e assim se coloca muito à frente de todas as concepções homéricas.

to, essa tensão interior ainda não são conhecidos da épica, pois nada de semelhante se encontra, no mundo físico dos corpos e nas suas fun­ ções, baseado no qual, Homero entendera o mundo da alma. Safo tem aántuição desse mundo e com a ousada e nova expressão “doce-amar­ go” apresenta-o com o substancialmente distinto do mundo físico. Tam­ bém nesse campo, antes dela, Arquíloco sentiu e pensou a m esm a coi­ sa, pois, embora não se encontre em sua poesia uma única palavra que exprima o dissídio do amor infeliz, a tensão interior transparece, ain­ da que inexpressa, nas frases que apresentam o sentim ento do amor como semelhante ao deliquio e à morte. Pois o amor que leva à proxi­ midade da morte é, sobretudo para Safo, a extrema tensão da alma.

Se os poetas dos primeiros séculos consideram esse novo senti­ mento como coisa divina e super-individual a ponto de fazer dele a instância decisiva no julgam ento do valor das coisas, isso não sign ifi­ ca, entretanto, que ele não possa levar a um caminho errado. Arquíloco, por exemplo, reage ao sentimento com selvagem arrebatamento. Mas mesmo esse sentim ento desenfreado, se considerado em relação às condições espirituais de sua época, pode ter um valor. A consciência da personalidade surge som ente no momento em que a alma reage. Somente o “coração que rosna”, com o o chama Homero, é sentido como um fato individual: assim também a dor no amor e a revolta que nasce de um fundado sentimento de ódio. Os grandes nexos de ocor­ rências e ações, de destino e caráter, ainda não aparecem com o algo de irrepetível e individual, e a reflexão sobre a vida leva ao conhecimento de uma lei geral: a lei da eterna mudança. Também essa é a nova desco­ berta dos líricos, que não só se dirige no mesmo sentido da descoberta do sentimento individual, mas dela constitui o complemento: à nova individualidade corresponde uma nova universalidade, ao novo sentir, um novo conhecimento. Uma coisa está em estreita e necessária rela­ ção com a outra, e o eterno subir e descer, é percebido através do senti­ mento e nele reconhecido. Neste subir e descer, capta-se a vida vivente: mas essa lei certamente não é capaz de frear a exuberância.

O campo espiritual da primitiva lírica grega é ainda mais limitado. Que o curso de uma vida humana não seja concebido como vida individual mas segundo categorias gerais, é coisa que se encontra em todo o mundo grego. A essa concepção da vida humana deu-se o nome de “clássica” e, ao espírito grego, corresponde o fato de que, na lírica primitiva, a revelação do sentimento pessoal venha acompanhado do senso do contínuo mudar das coisas. Os líricos não sentem como ato pessoal nem mesmo suas ações.

Em Homero, o que o homem realiza de particular não nasce de seu caráter individual ou de seu particular talento, mas invade-o com o força divina. Querendo exprimir esse pensamento com uma fórmula, poder-se-ia dizer: existem destinos individuais mas não ações indivi­ duais. Assim diz também Arquíloco ao falar de sua dupla vida de

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guerreiro e poeta (1): “Sirvo ao poderoso senhor Eniálio e, ao mesmgj tempo, sou da arte doce mestre, por dádiva das M usas” |

O m esm o ocorre com Safo, que se sente nas mãos de seus deusés| isto é, de Afrodite e de Eros. A emancipação em relação ao mito aconf tece quando se com eça a conceber o dissídio e a intensidade do sentii mento individual com o algo de pessoal, e, na ordem e no sentido dasf ocorrências humanas, já se com eça a não mais ver, com o em Homero;^ apenas uma repetida intervenção dos deuses, mas a eterna vicissitude^ das coisas que atuam movidas por uma força interior. Mas ainda n ¿ | nhuma das duas tendências levam a sentir a ação humana com o ativi-4 dade do indivíduo, visto que a conscientização do sentimento indivia dual só conduz ao senso da impotência, à ápr|%ccvía (amekhanía), e af consciência da vicissitude das coisas não orienta para o agir positivo;, mas para o suportar e o resignar-se. Já na Odisséia, esses temas ganham? mais relevo do que na llíada\ mas Odisseu, “que muitas dores sofreu, em sua alma”, aquele que “muito suportou”, era também, ao mesmo tempo, o 7toÀA)}ifi%avoç (polymékhanos), aquele que sempre sabia sa fe se bem das dificuldades e superar o senso da impotência com a sábia; ação.

M esm o quando os líricos falam de perfeição, não querem referfe- se à meta da atividade: a perfeição é recebida, sentida; para eles, precior so é o que interessa ao sentimento, aquilo a que os sentidos reagem com prazer. E o que tem valor é sempre representado, até os tempos de Pindaro e de Baquílides, com a imagem da luminosidade. O divino? é “irradiante e lum inoso”, a coisa perfeita “resplandece”, a grandeza sobrevive na “luz da glória”, o poeta revela essa “luz” e a faz “r e s ­ plandecer” além da morte obscura. Mais ainda do que na lírica indivi?, dual, isso fica patente nos encomios; e o exemplo nós o temos num dos? poucos poemas líricos de Safo chegado até nós quase completo: um himeneu (55) no qual, para dar particular solenidade à festa, cantam-so; as núpcias míticas de Heitor e Andromaca. Os primeiros versos do; poema perderam-se; e assim, a primeira coisa que o poema descreve é a chegada de um arauto a Tróia para anunciar que os recém-casados aca­ bam de chegar de navio, vindos de Tebas, pátria da esposa.

Rápido chegou a arauto... O veloz mensageiro Ideu, e anunciava... “Hojeé um dia d^ imensa glória para Tróia e para a Ásia. Heitor, com seus companheiros, traz a esposa dos olhos límpidos, de Tebas, a sagrada cidade, da fonte perene de Plácia; velejando, para aqui conduz, sobre as salsas vagas, a suave Andrômaca, com grande tesouro de argolas de ouro; tecidos de púrpura, recamos de flores e vários ornamentos multicoloridos, taças de pratae muitos cálices e marfins” . Assim falou o arauto. O pai amoroso, rápido, surgiu. Logo a notícia correu pelas amplas vias; e os homens de Ilion guiaram as mulas para os rápidos coches: uma multidão de matronas para ali subiu e meninas de corpo esguio e frágil torno.- zelo. E agrupadas à parte, apareceram as filhas de Príamo. Os corcéis foram jungidos por fortes homens aos cairos: muito jovens eram. Gritos possantes dos condutores... e os ginetes, em rápido trote, consigo arrastavam os coches.

O DESPONTAR DA INDIVIDUALIDADE... Os versos seguintes perderam-se, e logo após, temos:

|èmelhantes a deuses... essa multidão compacta, rápida em direção a Ilion avançara. Doce, iima melodia de flautas, entremeada ao som da citara, subia. Ensurdecedores, estalavam os 'çrotalos, das virgens o coro devoto um canto sacro entoava. Elevava-se pelo éter divino um eéo... ao longo das ruas... crateras e copas... nuvens de incenso e mirra mescladas a cássia subiam. Davam gritos de júbilo as matronas e os homens todos entoaram o solene péan. Invocavam o Deus que de longe fere, o Deus da lira; exaltavam Heitor e Andromaca, semelhantes aos deuses.

Esse poema é o mais antigo e evidente exem plo do que significa o mito para a poesia grega celebrativa22 Mito e realidade estão em estreita relação entre si, visto que o fato m ítico coincide exatamente com o presente. A narração das núpcias de Heitor termina com o carme nupcial, sendo que a própria canção de Safo é um carme nupcial. Se é costume, no himeneu, comparar os esposos aos deuses, aqui são eles postos no m esm o nível das personagens do mito. Safo cita seus nomes não para exaltar-lhes as grandes façanhas ou os altos destinos, mas por seu esplendor e por sua perfeição, e assim, aos presentes de casamento, justamente por serem esplêndidos, é dado maior relevo do que à própria ação. D esse m odo se desenvolve a narrativa, passando de um ponto lum inoso a outro, e suas luzes refletem a chama viva ■deles no presente.

Já velha, Safo descrevia, num poema com ovente, sua debilidade senil, e olhando para trás, contemplava nostalgicamente sua juventu­ de. D esse canto restaram apenas as partes terminais de cada verso num papiro (65a, 13-26), mas, m esm o não sendo possível reconstruir exatamente o texto grego, o conteúdo é claro e pode-se transmitir numa tradução. Esta é a versão dada pelo poeta alem ão M anfred Hausmann23*:

Já está minha pele enrugada pelos anos, minha coma corvínea, encanecida. Estão fracas as mãos, mais fracos os joelhos que não mais me sustêm. Não mais posso mover-me em passo de dança entre as donzelas, semelhante às indianas, à noite, no pequeno bosque. Mas o que fazer? Um homem mortal não pode gozar eternamente da juventude.Tens de aprendê-lo, diz uma canção, que também a Aurora conduziu, furtiva, o jovem Titon até os confins do mundo. Mas também até ele chegou a triste velhice. E agora que não mais se pode aproximar, à noite, da doce consorte, pensa ele ter perdido toda felicidade. E implora a Zeus que o mais rápido possível lhe conceda a morte. Eu, porém, sigo atraída pela graça e pela plenitude dourada. Desse esplendor sigo cercada, porque eu amo o sol.

22. Cf. H. Frankel, Nacht Gott. Ges., 1924, 64. Além disso, cf. infra p. 98. 23. M anfred Hausmann, Das Erwachen, Lieder und B ruchstücke aus der

grieschischen Friihzeit, Berlim, 1949, pp. 109 e ss. O conteúdo foi reconstruído por Stiebitz, Ph. W, 1926, 1250 e ss.

* Na tradução dos versos, obedecemos à versão italiana, que, por sua vez, baseou-se expressamente na versão poética de Hausmann (N. da T.).

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