O Hino Pindàrico a Zeus
100 A CULTURA GREGA E AS ORIGENS DO PENSAMENTO constróem m odelos, paradeígmata éticos, mas no sentido de que
particular situação do festejado é captada e entendida através do con fronto que o poeta dela estabelece com o passado mítico, com algo de; mais elevado, dotado de valor reconhecido, o que faz com que o festem jado e m esm o aqueles que o festejam encontrem respaldo numa tradi-, ção veneranda. Ora, dado que a realidade pode ser interpretada de dife rentes modos, há diferentes possibilidades de tratar o mito no canto^ coral. Uma festa nupcial, por exemplo, pode ser comparada a diversas; núpcias do mito, um caso de luto, à morte de diversos heróis míticos e assim por diante: o mito podia, assim, desenvolver-se de forma livre em torno das mais variadas situações.
Bem diferente era a condição do drama. Quando o rico mundo dos mitos, tal como o forjaram os inúmeros poemas épicos e, recentemente, a lírica, desembocou na tragédia, o elo entre mito e realidade rompeu- se. A tragédia ática estava ligada a uma única situação ritual: a do culto a Dioniso; e o fato de que, ao contrário da lírica, ela se prendesse à representação através das pessoas do coro, isto é, ao desenrolar do mito, na ação dramática, impedia que se conservasse na narração dos aconte^ cimentos míticos, qualquer relação, por mais livre que fosse, entre ót
mito e a realidade do presente. O sentido religioso da ação dramática^ devia perder-se quando os executantes se voltavam para outras esferas* do culto ou do mito e não eram mais seres a serviço de Dioniso.
Essa transição também encontrou oposições pelo fato de que, ago ra, tragédia “já não tinha nada a ver com D ioniso”2, mas nos dramas de Ésquilo, o trespasse é total e neles já não há traço dos elos que, em outros tempos, uniram a ação ao culto dionisíaco; até mesmo o drama satiresco, no qual o coro dos Silenos ainda usava a máscara requerida pelo mito, é, no desenvolvimento da ação, completamente livre.
Com isso não retornamos, porém, a uma representação épica do mito. O drama não pode sim plesm ente seguir a realidade, porque deve. transformar o fato segundo as exigências do teatro, deve subdividir a ação em cenas isoladas, que, com o o palco grego não conhece pano de boca, devem desenvolver-se necessariamente num único lugar e ne cessariam ente em tempo contínuo. A ação deve desenvolver-se no diálogo e, m esm o assim, num diálogo de três atores no máximo, visto que o tragediografo ático não tem mais que isso à disposição; o tempo limitado de que o trabalho dispõe exige com posição cerrada e limita ção ao essencial.
Portanto, se o drama se liberta das exigências da “realidade”, tan to mais tenazmente se liga àquilo que poderíamos chamar de seu mate rial de construção, isto é, às normas da representação, às leis artísticas.
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A tarefa de entender a realidade passa, agora, para a prosa científica, que surge contemporaneamente à tragédia. E m esm o quando se fa zem reflexões críticas sobre a tragédia (o que ocorre naturalmente apenas em fins do século V ), já não se exige que o drama diga a verdade, que seja uma cópia da realidade; mas, ao contrário, a “ilu são” é considerada um m eio necessário ao dramaturgo3 e julga-se um erro o ater-se excessivam ente próximo da vida real4
Como o drama se transforma em “representação”, isto é, com o de um lado se liberta da “realidade” das coisas representadas e, do outro, da forma imposta pelo culto, demonstra-o a evolução do drama satiresco, que, através do coro dos sátiros, ainda mantinha uma certa relação com o culto a D ioniso. Há pouco tempo conhecem os, e apenas em parte, dois dramas satirescos de Esquilo, ao passo que antes só tínhamos conhecimento de dois exemplares mais tardios desse gêne ro dramático. Um desses dramas satirescos, os Isthmiastai, apresenta os sátiros numa situação grotesca enquanto se exercitam para tomar parte nos jogos ístmicos. Traindo sua fidelidade a D ioniso, haviam -se posto eles a serviço de Posídon e, no santuário do Posídon ístm ico, penduram suas máscaras em oferta votiva. Seu pai, Sileno, procura em vão, com censuras e ameaças, cham á-los de volta ao antigo dever. Mas a competição é séria e eles perdem. Quando alguém (talvez o deus marinho Pálemon, relacionado com a fundação dos jogos ístm icos) lhes mostra o dardo (podem os, pelo m enos, imaginar que seja um dardo, já que essa cena está muito fragmentada) com o qual devem começar o pentatlo, eles já não querem mais saber do mundo agonístico. E a cena final do drama provavelmente devia representar o seu retor no ao culto a D ioniso. Se essa reconstituição do drama for exata, a obra devia, portanto, representar um retorno às formas do culto a Dioniso; mas a verdadeira vida dramática da peça vem do fato de os sátiros terem sido transferidos para um ambiente que lhes era estra nho: as com petições ístmicas. Os m itos de D ioniso estavam quase exauridos e já não podiam fornecer matéria para os dramas satirescos; os sátiros foram então sim plesm ente transportados para outros mitos, com os quais eles nada tinham a ver. Isso se torna ainda mais eviden te em outro drama satiresco de Ésquilo, recentemente descoberto, os
Diktyoulkoí, ou seja, os Pescadores. Seu assunto é o mito de Dânae: Dânae teve um filho de Zeus, Perseu, e por isso é repudiada pelo pai,
3. Cf. Górgias, fr. 23, ed. Diels. Parece, efetivamente, que, desde o início, criticou-se a tragédia por ser uma “arte mentirosa”, como o demonstra a anedota de Sólon e Téspis in Plut., Sólon, 29,6. Essa anedota capta tão bem um novo aspecto do drama, o de falar sobre coisas sérias “de brincadeira” (pera 7iai5iô<;), que nos sentimos tentados a atribuir-lhe um certo fundamento histórico.
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que a encerra com o filhinho numa caixa de madeira e a joga no mar. A ação inicia-se com a entrada em cena de dois pescadores que lançam a: rede na orquestra (o que pressupõe, portanto, um aprofundamento do, solo na própria orquestra). A pesca que fazem está tão pesada que eles não conseguem arrastar a rede para a margem e pedem ajuda; adianta- se então o coro dos sátiros e, ajudados por eles, os pescadores conse-; guem arrastar para a margem uma grande caixa na qual se acham a mulher adormecida e o pequeno Perseu. Um dos pescadores, Díctis, parte em busca de socorro e os sátiros são encarregados de vigiar,; nesse m eio tempo, os dois náufragos. Mas Sileno, o pai dos sátiros, apaixona-se instantaneamente por Dânae e lhe propõe casamento. Desesperada e cheia de desdém, Dânae invoca Zeus, que a colocou nessa situação, e ameaça enforcar-se caso for deixada à mercê daque le “monstro” M as Sileno não se preocupa muito com isso; descreve ao pequeno Perseu a vida alegre que juntos levarão pelos bosques: Dânae, pensa ele, deve, na verdade, estar contente por ter enfim en contrado um tão bom marido, após viver tanto tempo com o viúva, sobre o mar e, além do mais, fechada numa caixa. O coro prepara-se para a partida mas a cena final, que não chegou até nós, devia repre sentar a caçada dos sátiros e de Sileno e o acompanhamento de Dânae até a cidade. Vemos que Ésquilo se vale de uma história que nada tem a ver com os sátiros e com D ioniso. Mas para o drama satiresco era necessário o coro dos sátiros. D e maneira um pouco artificiosa, mas, hábil, e com grande eficácia cênica, Ésquilo faz entrar em cena os sátiros, valendo-se do fato de que os pescadores não podem, sozinhos, arrastar a rede para terra e pedem ajuda; pretexto de que também se valerá mais, tarde o drama satiresco para justificar a presença dos sátiros. O poeta tem de transformar o mito para adaptar-se às leis teatrais.
Como era natural, isso contribui largamente para a livre trans formação dos antigos mitos e, visto que em Atenas, todo ano, repre sentavam-se pelo menos três, quando não até m esm o seis novos dra mas satirescos, sempre novos mitos foram recebidos nessa livre ação cênica. E o m esm o podemos dizer da tragédia que devia até mesmo apresentar um número três vezes maior de obras; mas por ter ela eli minado o coro dos sátiros, a ação desenvolvia-se, ali, inteiramente independente do culto a D ioniso.
Consideremos ainda uma vez o valor que têm mito e realidade para a poesia grega dos primeiro séculos e procuremos, por m eio des ses exem plos, determinar com maior precisão as diferenças entre os diversos gêneros de poesia. A épica narra o mito, ainda lhe atribui valor de realidade e constrói, por assim dizer, em dois estratos, ó terreno e o divino, de m odo tal que os acontecimentos que se desen volvem no mundo ultraterreno vão determinar o sentido e o valor dos acontecimentos terrenos. A um exam e mais atento, revelam -se outros
103 dois estratos da realidade, que servem, eles também, para explicar o evento mítico-terreno: isto é, os exem plos extraídos da antigüidade, que ficamos conhecendo pela história dos heróis e que guiam o ho mem para o conhecim ento do eu, e, em segundo lugar, os sím iles homéricos, nos quais imagens extraídas da realidade do presente são usadas para ilustrar os acontecim entos da ação épica. A s compara ções míticas elevam -nos a um mundo que fica a m eio caminho entre o mundo dos deuses e o dos heróis de que trata a epopéia, ao passo que os sím iles transportam para o mundo da épica um fragmento da realidade presente ao poeta. Esses “estratos intermédios” dados pelas comparações e pelos sím iles constituem os primeiros degraus das de duções analógicas dos quais se servirá mais tarde o método em pírico5 Nas origens da lírica coral e do drama temos a dança sacra, pela qual o mundo dos deuses se identifica com a realidade terrena do presente. Aqui, “realidade” tem um sentido com pletam ente distinto da realidade da narração épica: não se trata de um fato verdadeiro ou falso, acontecido outrora, que pode ser “narrado”; o acontecim ento mítico “revive” na ação dramática. Para atores e espectadores essa representação “é ” o acontecimento m ítico e, todavia, em certo senti do, não o é, na medida em que se sabe que o herói é agora “represen tado” por este ou aquele ator. Aqui é ainda mais difícil do que no caso de a narrativa estabelecer o que seja a realidade mítica. É, com o diría mos sob um ângulo moderno, um acontecimento “significativo”, cujo significado pode sempre reatualizar-se e que - repetindo Aristóteles - não se limita apenas ao particular mas tende para o universal. A lírica coral mais madura abrange, portanto, o elem ento narrativo próprio da épica, mas ainda se apoia firmemente na relação entre presente e passado mítico: a realidade do presente passa, assim, a ser “ilum ina da” pelo relato do mito e adquire, desse modo, um significado pro fundo; mas o mito só pode desenvolver essa função quando, com o na épica, ainda for considerado com o “real”, embora assumindo, cada vez mais, o caráter de uma particular realidade superior. O drama, ao contrário, liberto dos laços que o prendiam ao culto, desvencilha-se de toda relação com a realidade do presente e, ao m esm o tempo, tira do mito o caráter de realidade, transformando-se em ação cênica. Fal ta, portanto, ao drama aquela subdivisão em estratos própria da épica e da poesia coral. Toda relação, seja com a realidade histórica seja com a do presente, parece solta, e o mito torna-se um mundo em si que só existe na ação dramática. E sse livre desenvolvim ento da ação já existia naturalmente antes, nas fábulas e nas historietas, e nem mesmo o drama satiresco está isento de sua influência. M as qual a situação do drama sério? Se em relação à tragédia alguém pergunta: o
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que se representa aqui é verdade? - , não se poderá responder: não|§ - Então é pura mentira? - Não: também não! - O critério da verdade^ e da mentira, que se podia usar para a épica, perde toda serventia?? R evela-se, aqui, uma nova relação com a realidade.
Também nas artes plásticas atenienses transforma-se nessa épocáj a relação da obra de arte com a realidade. B. Schweitzer6 observoijj que nas inscrições dos monumentos dos primeiros séculos, a estátua é | identificada exatamente com a pessoa que ela representa: a imagem %¡¡ a pessoa representada. Sob a estátua está escrito, por exem plo, assinítl “Eu sou Cares, senhor de Teiquiússa” Apenas em Atenas encontra^ mos estas inscrições: “Eu sou a imagem, o m onumento fúnebre, ál lápide de fulano de tal” Na Ática, portanto, a obra artística não identifica com a pessoa que ela representa. Isso significa que aqui así artes plásticas não são consideradas com o um campo particular e isoy ; lado em si mesmo: a arte não é sim plesm ente a realidade, mas dela setí aparta. A arte imita a realidade, representa-a somente, revela seu “sig^ niñeado”, e torna-se, por isso, uma nova e particular realidade. Comò1 para a tragédia, assim também para a arte em geral é justamente essél apartar-se da realidade que amplia o círculo dos objetos representa- j dos, possibilita um tratamento mais livre do assunto e permite à arte- desenvolver-se livremente. Naturalmente, com o nas artes plásticas^ assim também na tragédia, longo será o caminho que leva à invenção,, livre visto que, repetimos, embora a arte de caráter sério já não apre sente a “realidade”, ela não “m ente” e, embora os mitos da tragédíase tornem cada vez mais intrincados, a “ação cênica” ainda conserva;; nos primeiros tempos, muito da antiga “verdade”, isto é, mantém com a realidade uma relação diferente da fábula ou da comédia; nem de outro modo se poderia explicar por que a arte se dedicou tão seria mente às suas tarefas, salvo porque se tratasse justamente da “realida de” Num certo sentido, é exatamente esse ato de independência que traz tanto a tragédia quanto as artes plásticas para a “realidade”; e de_ fato, a partir dessa guinada decisiva da arte, abre-se uma via direta para a realismo, tanto na literatura quanto na escultura e na pinturaé Surge aqui, portanto, um conceito da realidade totalmente novo e não muito fácil de entender. A ssim também nos sentim os embaraçados por não mais podermos usar sim plesm ente os conceitos de “verdadei- ' ro” e de “real” para a arte, tendo, para indicar a relação da obra artís tica com a realidade, de recorrer a um conceito tão vago e incerto com o este, por exemplo: a arte deve “conformar-se” à realidade.
Ter-se^-á então de entender a realidade com o algo que só possa, ser representado no drama? A tragédia ocupou-se, muito m enos do
6. Die Entstehung des griechischen Porträts, Abh. d. säehs. Akd d. Wiss, Philolm hist.. Kl. Ed., Leipzig, 1939,4. Cf. P. Friedländer, Epigrammata, p. 10.
que a poesia primitiva, com os acontecimentos representados, fossem eles verdadeiros ou falsos, ao passo que se ocupou a fundo com os homens que aparecem agora sob um aspecto totalmente diferente. Para melhor compreendermos a nova concepção do homem, a nova forma çom que o representam na tragédia, é imprescindível, mais que um confronto com a lírica coral, o cotejo com a lírica individual grega dos primeiros séculos, na qual o homem fala de si daquele m esm o modo como, na tragédia, as personagens exprimem seus sentimentos, seu pensamento e sua vontade.
Um feliz acaso con servou -n os um dos prim eiros dramas de Ésquilo: trata-se realmente de um acaso, pois a obra nos foi transmi tida através de um único manuscrito: durante séculos, essa tragédia existiu num único exemplar; data do último decênio do século V, foi provavelmente escrita uns quinze anos antes da batalha de Salamina; pertence, portanto, ao período pré-clássico, à era arcaica. Ainda é formada principalmente de cantos corais e, por isso, em longos tre chos, tem mais o caráter de uma cantata do que de um drama. O coro é constituído pelas filhas de Dânao; estas vêm com o pai do Egito para Argos, para fugirem dos primos, filhos de Egito que as querem obrigar a desposá-los. Partem com uma nave refugiando-se na Grécia, onde esperam encontrar proteção em Argos, pátria de sua antepassada Io que, amada por Zeus e perseguida pelo ciúm e de Hera, gerou no Egito o filho de Zeus, do qual descendem os irmãos Dânao e Egito como netos, e as Danaides e os Egípcios com o bisnetos. O coro das Danaides apresenta-se, suplicando, numa prece angustiada a Zeus para que este lhes dê aquela proteção com que sempre é recebido o estran geiro indefeso, e entre muitos lamentos narram elas sua história.
Aparece o rei de Argos, Pel asgo, e pergunta-lhes o que desejam; quando elas lhe pedem proteção, ele de pronto percebe que isso signi fica, para a sua cidade, a guerra contra os Egípcios; mas recusar pro teção às suplicantes significaria atrair sobre si a ira de Zeus. Em sua angústia, as jovens ameaçam até m esm o suicidar-se diante do altar, caso o rei não as proteja, o que lançaria uma terrível mancha de infâ mia sobre a cidade. D ecidido a tomar o partido das jovens suplican tes, o rei entra na cidade para apresentar o caso ao povo. D epois de uma prece do coro, Pelasgo volta e anuncia que todos os cidadãos decidiram conceder a proteção.
Os coros dessa tragédia estão cheios de cpoßoq (phóbos), de an gústia, mas essa não é uma característica particular da obra, uma das primeiras de Ésquilo; pois o pouco que nos chegou da peça do precur sor de Ésquilo, Frínico, já nos permite observar que também ele con feria às lamentações uma parte muito importante nas suas tragédias. E tanto Ésquilo quanto Frínico procuraram intensificar o tom da pai xão por m eio de coros fem ininos e de um ambiente oriental.