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Escala entre Não-actuação e Actuação

Parte 1: Considerações sobre a Abordagem Metodológica a Adoptar 4.1 Natureza Dinâmica e Complexa do Estudo

4.3 Metodologias de Investigação em Estudos da Performance

4.3.3 A Investigação Baseada nas Artes: Activismo e Humanismo

A Investigação Baseada nas Artes (IBA) tenta contornar algumas das dificuldades no desenvolvimento da pesquisa numa abordagem abarcadora dos aspectos que caracterizam os contextos criativos e artísticos. A IBA estabelece uma dupla relação: por um lado, questiona as formas hegemónicas de investigação académica, ao incluir-se no movimento que legitimiza como ciência outras disciplinas e outros processos de acesso ao conhecimento que

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Sobre a colaboração de Hastrup para uma definição da diferença entre etnodrama com influências do Teatro Épico e etnodrama enquadrado no modelo de teatro tradicional, consultar Tedlock (Tedlock, 2005: 472). 134

Sobre críticas levantadas quanto ao rigor do estudo, consultar capítulo dedicado à Antropologia Teatral.

não apenas os das ciências experimentais. Por outro, mune-se de formatos artísticos a fim de informar sobre os fenómenos e as experiências que são o centro da investigação.

A perspectiva do universo artístico, associada à do indivíduo como ser sensível, social e criativo, contou com os contributos das teorias dos domínios do Teatro Educação ou da Psicologia. Nomeadamente a importância da arte como experiência, o seu valor científico e as condições em que esta deveria ocorrer, já vinham contempladas em Dewey. Em

Democracy and Education, este autor determina as seguintes condições com vista ao bom

sucesso da abordagem:

“primeiro, que o aluno possua uma situação de experiência genuína – que haja uma actividade contínua na qual ele está interessado pelo valor da mesma; segundo, que um genuíno problema se desenvolva dentro desta situação como estímulo ao pensamento; terceiro, que ele possua a informação e faça as observações necessárias para lidar com o mesmo; quarto, que soluções sugeridas lhe ocorram, as quais serão da nossa responsabilidade desenvolver duma forma ordenada; quinto, que ele tenha oportunidade e ocasião para testar as suas ideias aplicando-as, para tornar o seu significado claro e para descobrir por si a validade das mesmas.”

(Dewey, 1916: 192)

Também o universo ficcional e experiencial como fonte de socialização e conhecimento de si e do mundo foi investigado por Winnicot, a importância dos actos de significado na constituição do sujeito com Jerome Bruner, ou a importância e existência do saber intuitivo e do saber racional como mobilizador de diferentes inteligências propostas por Gardner, entre muitas mais pesquisas. Mais recentemente, as evidências formuladas por Damásio (2000), quanto à influência das emoções no raciocínio e na tomada de decisão, deram alento à formulação de teorias sobre a investigação baseada na prática artística onde as dicotomias corpo e mente, intelecto e emoção, ou reflexão e acção tendem a esbater-se.

Hernandez, baseando-se em Eisner (1998) e Barone (2001), defende que, para além da investigação científica, existe outro tipo de investigações mais apropriadas aos estudos dos comportamentos humanos, relações sociais e representações simbólicas, como o caso da investigação etnográfica e performativa. Foram vários os contributos a fim de conferir à prática artística desenvolvida em sessões de trabalho um valor de investigação científica. Entre eles destacam-se os estudos desenvolvidos no domínio da psicoterapia e da arte terapia que, segundo McNiff (1988), se centraram na investigação de processos e de representações

artísticas a fim de validar a pesquisa dos arteterapeutas na área da saúde mental. Tanto a perspectiva de experiência artística, contendo valor de fonte de conhecimento, como a necessidade de reconhecimento da própria experiência artística enquanto tal levaram a IBA à apropriação de estratégias alternativas para recolha de dados como sejam o diálogo e as entrevistas, a participação e a participação observante. Hernandez comenta a este propósito que “Em ambas as tradições (IBA e arte terapia) também se faz referência às questões éticas da arte, à propriedade da interpretação e a uma definição relacional da arte, que inclui capacidades que permitem trabalhar de maneira simultânea com componentes visuais e verbais.” (Hernandez, 2008: 91).

Hernandez (Ibid.) aponta como outros contributos para uma definição de IBA os de Kapitan (2003), Hervey (2000), Allen (1995) Linesch (1995), a que adicionamos os de Finley (2005), Tedlock (2005) ou Thompson (2008).135 O que se pretende é que a dimensão

ficcional seja admitida como variável de observação (não-semiótica) e para tal o investigador-performer terá de disponibilizar-se a ser criativo na sua abordagem.

A resistência académica à validação de elementos do universo artístico como factores epistemológicos vem na sequência de a dificuldade de quantificação e a divergência originada por fenómenos como a criatividade, intuição, sentidos, imprevisibilidade e erro (Bateson) se imporem à convergência decorrente da análise e sistematização racional. No entanto, esta tendência está cada vez menos sustentada.

Segundo Barba (2007), e por analogia, a tensão é idêntica à que é originada na atribuição de significado a “orgânico” e “inorgânico”, em que é evidente a diferença de perspectiva entre artes e ciências: enquanto, em teatro, se refere a uma distinção entre um trabalho que é credível e vivo e outro que é forçado, nas ciências naturais, refere-se à diferença entre o mundo biológico e o mineral; enquanto no teatro a classificação entre ser orgânico ou inorgânico é subjectiva, na ciência, é objectiva: “Ou, para exprimi-lo em termos que possam apelar tanto a cépticos como a relativistas: as discussões em arte têm a presunção de serem objectivas, enquanto aquelas em arte presumem que a objectividade não existe.” (Barba, 2007: 302).

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Hernandez destaca Huss e Cwikel (2005) na apresentação de propostas para que a IBA se constitua método de investigação alternativa e aponta Leggo, Grauer, Irwin e Gouzouasis (2004-2006) que avançaram com estudos sobre os procedimentos a adoptar a fim de se poder realizar, representar e publicar este género de investigação.

Mal Entendidos

Pelo facto de pretender debruçar-se sobre o desenvolvimento e sobre o acontecimento que é a prática artística, esta investigação não deve ser confundida com outro tipo de investigação também artística onde a prioridade é a obra e o processo do artista, ou outra onde preside o desenvolvimento de uma descrição “artístico-criativa” centrada num género autoetnográfico136. Como afirma Bacon,

“Dentro de um ambiente de pesquisa criativa, tal como o das artes aplicadas, o pesquisador é compelido a trabalhar criativamente por forma a capturar a essência daquela área. Sem esta abordagem, o ambiente Criativo será omitido, ou desacreditado. Se tentássemos reformular o estudo de caso em termos meramente científicos e factuais, não estaríamos a desenvolver um processo etnográfico que contém ferramentas apropriadas para o tema.”

(Bacon, 2006: 146)

4.3.3.1 Características da Investigação Baseada nas Artes

Hernandez, no mesmo artigo, indica uma possível definição da Investigação Baseada nas Artes a partir de Barone e Eisner (2006), onde a IBA se configura na utilização de procedimentos artísticos, seja para informar sobre as práticas de experiência, seja como interpretação dessa mesma experiência, elaborados pelos sujeitos que integram a investigação.

Por fim, sistematiza da seguinte forma as principais características da IBA: – “Utiliza elementos artísticos e estéticos não linguísticos, relacionados com as artes visuais, ou performativas por oposição à utilização de elementos linguísticos e numéricos da investigação utilizados na maior parte das outras áreas de investigação. – Procura outras maneiras de olhar e representar a experiência. (…) Não persegue a certeza mas antes o realce de perspectivas, a sinalização de matizes e de lugares não explorados.

– Trata de desvelar aquilo de que não se fala.” (Hernandez 2008, 94)

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Por vezes, a auto-etnografia torna-se demasiado complacente em si mesmo, contendo o risco do ponto de partida e de chegada ser o próprio indivíduo que relata a experiência.

Este autor descreve ainda alguns contributos da IBA: a promoção da reflexividade e ligação entre o eu e os outros; a captura do inefável e do não verbalizável; a mobilização de uma memória não apenas intelectual, mas também sensorial e emocional; a abordagem de carácter holístico, em que a parte pode ser conectada com o todo e o todo com a parte; a produção do paradoxo, em que o universal é reconhecido através do detalhe; a utilização de metáforas e símbolos na evocação da complexidade e como mediação da teoria; a possibilidade do habitual ser percepcionado como extraordinário e assim provocar a percepção de outras perspectivas; o protagonismo dado ao embodiment que implica a acção e repostas também corporizadas; a acessibilidade e empatia do discurso académico; a integração da noção de “esferas públicas”, onde a dicotomia entre público e privado se esbate ao tornar o pessoal social e o social privado; Para desenvolver esta abordagem a recolha de dados baseia-se em textos, processos de percepção e compilação de materiais empíricos.

Alexander (2005) realça que as sessões se caracterizam por serem, simultaneamente, um local de acção inteligente, um espaço liminal, uma teatralização da experiência, um ponto de vista da cultura e do social.

Tedlock indica duas valências nesta abordagem particular em que a performance teatral é o elemento essencial da representação das experiências dos participantes:

“Porque a cultura é emergente na interacção humana (...) os dramas são uma forma poderosa para formar e mostrar a construção cultural em acção (...) a escrita e produção teatral (...) fornece as rédeas para os voos da imaginação, porque a

performance dramática exige que a visão seja “embodied.”

(Tedlock, 2005: 470)

Pode afirmar-se que, neste quadro, a performance teatral assume o papel de objecto mediador e espaço de conexão entre o não verbalizável, a área do inconsciente dos participantes e as suas referências culturais e de veículo de representação de significados sociais, culturais e outros.

Bacon (2006) sustenta este ponto de vista ao afirmar que um dos objectivos é permitir que o objecto da investigação tenha algo mais a dizer do que aquilo que constituía as referências (e perspectivas) iniciais do investigador performer e dos performers:

“Procuramos ter a capacidade de articular o sentimento da experiência, quer do investigador quer do investigado. Podemos perder o essencial se (...) não

encontrarmos as ferramentas e estratégias para entrarmos no mundo dos participantes por forma a vermos as coisas de forma diferente.”

(Bacon, 2006: 155)

Silverman (2000), ao afirmar que o principal objectivo de uma investigação é encontrar estratégias de aceder ao que as pessoas fazem e não apenas ao que dizem, cria igualmente um bom argumento para o reconhecimento desta forma de pesquisa.

Uma das grandes diferenças entre a IBA e outras que lhe são semelhantes é criar espaços para que seja possível a “ transformação dos sentimentos, pensamentos e imagens

numa forma estética.” (Hernandez 2008, 94). As estratégias de validação utilizadas não se

baseiam apenas em relatos, ou representações textuais, visuais e performativas, mas noutras que contenham igualmente uma componente artística.

Finley afirma a propósito dos textos produzidos em contexto performativo que: “O “performance text” redirecciona a atenção para o processo de fazer pesquisa mais do que procurar a verdade, respostas e conhecimento especializado no relatório final das descobertas do pesquisador.” (Finley, 2005: 689).

Na perspectiva artística, o texto que decorre da investigação e que constitui a dissertação pode assumir diferentes formatos narrativos, ou a sua combinação e, eventualmente, traduzir-se num texto auto-etnográfico. Mas pode traduzir-se igualmente pelo complemento entre texto e imagem (por exemplo, fotos), em que um não pretende ser a ilustração do outro, mas antes uma interconexão de narrativas que mantém o seu carácter autónomo. Esta composição é que, por sua vez, potencia uma livre articulação e variedade de leituras entre ambos, que irá provocar os novos significados e a selecção de relevâncias.

Procura-se traduzir as questões, diálogos e conclusões que ocorrem da racionalidade e da reflexão verbal, sem menosprezar elementos igualmente significativos que surgem através do não-verbal e do embodiment.

Como espaço aberto e dialógico de pesquisa e de expressão, a performance necessita de uma espécie de “interpretação imaginativa” (Finley 2005: 689) acerca dos acontecimentos e dos contextos. A ênfase da investigação é distribuída entre o mental, a reflexividade, a intuição e o sensorial. A criatividade emerge em diferentes níveis: na criação de estratégias como itinerário heurístico (Morin); na criação e composição da narrativa informada pelo corpo inteligente e sensitivo; na relação com os performers participantes; na prática desenvolvida durante as sessões de trabalho; na composição e apresentação da performance.

Na IBA, já que a principal preocupação reside no processo e em como expressar as situações vividas numa determinada situação artística (Mullen, 2003), a componente estética não é uma qualidade essencial, mas antes um elemento que é gerado por um universo social mais vasto que, por sua vez, transforma e é transformado pelo produto artístico e performativo. Mahon, declara que a manifestação estética é equacionada no seu carácter contextual e situacional e, como tal, os seus elementos e linguagens estão profundamente enraizados na especificidade que lhes é própria e não podem transferir-se “para uma Investigação-Acção, para uma comunicação, ou interpretar-se como traduções directas de interacções sociais.” (Mahon in Hernandez, 2000: 111). Hernandez conclui que “ as reacções que provoca a manifestação artística são mais importantes que a qualidade artística como tal e como se apresentaria desde critérios estéticos externos.” (Hernandez, 2008: 112).

Finley reforça igualmente a função estética específica do trabalho realizado na comunidade:

“Imaginação, comunidade e experiência comunitária, bem como consciência perceptiva, emocional e sensorial, todas contribuem para as dimensões estéticas da investigação baseada nas artes. Na investigação baseada nas artes, a arte que se encontra na vida diária compõe a estética.”

(Finley, 2005: 690)

O espaço de comunicação e de significados decorrentes desse contexto situa-se assim tanto no universo quotidiano e não subjunctivo, quanto no universo não quotidiano e subjunctivo de que são constituídas as sessões desenvolvidas durante o trabalho de campo. A prática artística torna-se lugar de “conhecimento em suspensão”, de “bewilderment and beyond”, pertencente ao domínio do subjunctivo de Schechner, do exploratório de Winnicot e da dilatação de campo de Barba, sem tradução em outras linguagens que não a artística do “aqui e agora” de onde essa reflexão “corporizada” eclode. É a este nível que o saber dos sentidos, a linguagem não-verbal, a complexidade e a dimensão estética se tornam protagonistas. No entanto, Barba alerta-nos para o facto de que:

“Quanto mais as nossas explicações se colarem à nossa experiência no trabalho, mais elas parecem fantásticas e exóticas ao ouvinte. E ao tentar transmitir experiência, existe um risco de mal-entendido (...). A forma mais fácil de escapar a estes problemas é através do silêncio.”

(Barba, 2007: 301)

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