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Escala entre Não-actuação e Actuação

III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO: RAÍZES DO TEATRO SOCIAL

3.6 Contributos de Outras Áreas das Ciências Sociais

3.6.1 Antropologia e Sociologia

3.6.1.3 Manifestações Culturais e Performativas na Antropologia Cultural

A Antropologia representa um contributo fulcral não só na compreensão da

performance, das suas implicações culturais e interculturais, mas também como informadora

da investigação com base na prática etnográfica, do peso do drama na constituição de comunidades e na importância do ritual e da performance como lugar de transição e de identificação individual e cultural (Milton Singer, 1959; Victor Turner, 1982; Dwight Conquergood, 1985; Kirsten Hastrup, 1995).

Segundo Carlson (2004), Singer foi o precursor do conceito de “Performance Cultural”, em 1959 avançou com uma abordagem que viria a influenciar a compreensão da relação entre Teoria da Antropologia e do Teatro na área da performance a partir dos anos 70. Singer afirmava que uma determinada população pensava e via a sua cultura como “encapsulada” em pequenos eventos, ou “performances culturais”, que poderiam e deveriam ser mostrados nesse mesmo grupo ou noutros grupos e que se constituíam como unidades observáveis da estrutura dessa mesma cultura. Essas performances consistiam numa série de actividades que envolviam e tinham significado para determinado grupo cultural, como sejam teatro, dança, recitações, festas religiosas, entre outras. Esta abordagem da

performance como veículo de concretização de pressupostos culturais é actualmente

considerada uma visão ultrapassada. Teóricos como Keneth Burke83 (1957) e outros que lhe

sucederam, como Richard Dorson (1972) e Richard Bauman (1986), foram cada vez mais perspectivando a performance não como a ilustração de uma cultura, mas como enformando a própria cultura, atribuindo-lhe assim uma maior dimensão na constituição da identidade individual e social. As novas orientações pressupunham não um enfoque no “evento” e na “retórica “ em si, mas uma abordagem ao contexto que impunha uma maior ênfase na função deste no acto comunicativo e performativo, centrando-se em situações específicas em que essa comunicação e modos de acção se constituíam. Esta visão debruçava-se sobre a ocorrência da totalidade da performance em contexto e nas dinâmicas de recepção geradas, mais do que sobre as actividades do performer que as compunha84.

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A quem se deve a fórmula “enfoque dramatúrgico”.

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Dessa perspectiva germinou a questão sobre se a performance resulta do que o performer executa, ou se, até certo ponto, resulta do contexto em que essa performance é desenvolvida.

Mito, Rito e Festa

Segundo Shepherd e Wallis (2004), alguns dos temas comuns à investigação antropológica e à investigação teatral são o mito, o rito, a festa, as origens e o sagrado. Enquanto, na perspectiva da pesquisa teatral, os pressupostos antropológicos oferecem bases de reflexão acerca do nível comunicativo que se estabelece entre performer e audiência e que transcendem o âmbito do evento dramático em si, na perspectiva da pesquisa antropológica, o campo teatral permite uma vasta experimentação ao centrar-se no acto e no jogo de representação do Homem, permitindo recriar micro-sociedades e validar o vínculo do indivíduo com o grupo. Este interesse entre ambas as áreas gerou um intercâmbio de papéis em que homens de teatro assumiram a seu tempo o papel de antropólogos e antropólogos- sociais e culturais e aplicaram metodologias e técnicas teatrais nos seus estudos, como Turner, Hastrup ou Conquergood.

O Jogo e o Lúdico

A influência do lúdico e do jogo humano como qualidades inerentes às actividades performativas foi um tema de investigação desenvolvido por Huizinga (1938) e Caillois (1958), cujas conclusões vieram encorporar o conceito de lazer, que Turner enquadrou nas actividades liminóides. Apesar de terem progredido nas suas conclusões individualmente, ambos se debruçam sobre a função do jogo na cultura humana. Huizinga dá enfâse à identificação de um conjunto de indicadores presentes em diferentes formatos de manifestações culturais (concursos, performances, exposições), enquanto Caillois se debruça sobre a delineação de estruturas de actividades do jogo, desde manifestações espontâneas de alegria na infância, até outros formatos correspondentes no mundo animal. As seis qualidades que Caillois atribui ao jogo são: “não é obrigatório, é circunscrito no tempo e no espaço, indeterminado, materialmente improdutivo, de limite por regras, e preocupado com uma realidade alternativa.” (Carlson, 2004: 21). Estas qualidades são idênticas às características identificadas por Huizinga: são actividades de escolha livre, que podem ser suspensas a qualquer momento (associadas à noção de lazer); são construídas à parte da rotina do dia-a-dia, decorrem numa esfera temporal própria, com uma disposição muito particular derivada da situação e do momento. Caillois e, por vezes também, Huizinga contextualizam as categorias presentes nas actividades culturais do jogo, associando-as a elementos presentes na teoria do teatro (“agon” ou desafio, “mimesis”, “álea” ou acaso, e

“illinx”/ “vertigo” ou subversão e “pânico voluptuoso (…) sucedido por uma consciência física”). A perspectiva da importância do jogo, em termos individuais e culturais, avançada por estes dois investigadores, permitiu a adopção de novos dados que iluminaram a reflexão na área do teatro e da performance, nomeadamente em intervenções em meio escolar ou na comunidade em geral e também na área da Antropologia. Huizinga, ao adoptar um ângulo de análise em que relaciona o jogo e o ritual, conclui que o jogo é um factor de reforço do espírito de comunidade, com efeitos que se estendem para lá do momento do seu acontecimento, providenciando um fluxo de representações que informam e reciclam sobre valores, convenções e papéis, que estão implícitos, mas não são explícitos numa cultura. Ambos atribuem ao jogo uma função subversiva, com comportamentos de ruptura com a norma, fundamental à perpetuação de uma vida saudável em comunidade.

A Festa

Nas situações performativas antecipadas por um carácter subversivo e de desafio às regras e papéis, cria-se a oportunidade de exercer novas formas de interrelação entre os indivíduos. Associado ao despertar dos sentidos e do espírito de jogo, encontra-se o Carnaval, que se categoriza no grupo de manifestações e outras festas cuja formatação implica que as restrições impostas pela ordem que rege uma determinada estrutura social se encontrem momentaneamente suspensas. Contém, de forma mais ou menos evidente, temas presentes em rituais desenvolvidos nas sociedades tribais e agrárias, como, por exemplo, os relacionados com a morte e a renovação.

Um dos autores que mais contribuiu para o estudo do papel subversivo de manifestações culturais como o Carnaval foi Bakhtin (1965), que associou, a um contacto espontâneo e informal entre os indivíduos, a livre expressão de vontades latentes ou reprimidas através de comportamentos e manifestações excêntricas, com propensão para a disrupção, a miscelânea, a combinação de opostos, o absurdo, ou o desvario. Um dos dados mais importantes fornecidos por Bakhtin é que o Carnaval não está associado a um pensamento abstracto de expressão cultural, mas retira das vivências e acontecimentos da vida em comunidade, de todos os dias, a matéria-prima sobre a qual vai incidir esse comportamento histriónico e grotesco. Esta inferência contribuiu para a compreensão das expectativas criadas num momento de construção performativa em meio rural, onde este tipo de manifestações ainda está bastante divulgado.

Bakhtin vê no teatro e no espectáculo uma variante destas forças culturais mais ancestrais, embora com características bem mais mediatizadas e mutiladas que as suas predecessoras. Clifford (1988), com base nesta constatação, avançou para uma análise da extensão e variantes destas manifestações na contemporaneidade e concluiu que dificilmente se consegue isolar os sistemas de funcionamento próprios de cada sociedade, visto que as sociedades actuais se caracterizam por pontos de intersecção e cruzamento entre si. Assim, passa a ter lugar uma performance local improvisada e “creolizada”, termo de Clifford, que resgata manifestações performativas passadas, mas também adiciona e sobrepõe outros símbolos e formas de representação, inicialmente externas a esse grupo. Como último factor de contágio intercultural, surgem as realidades relacionadas com a globalização, onde a facilidade de comunicação e de transporte permite a circulação de performances culturais, ou parte delas, numa constante complexificação dos padrões de contacto entre culturas, ou entre

performances culturais (Carlson, 2004).

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