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O Modelo Comunicativo de Teatro Social: Lógica e Poder do Teatro

2ª Parte – Resultados

6.2 Princípios e Conceitos Teórico-Práticos Identificadores de Teatro Social

6.2.7 O Modelo Comunicativo de Teatro Social: Lógica e Poder do Teatro

O teatro como instrumento ou o teatro como arte é foco de análise de vários autores (Bento, Vieites, Koudela), onde marcam a distinção entre ambos e as suas implicações. Avelino Bento em consonância com autores de origem espanhola (Caride, Úcar, Ventosa) realça a co-existência – mas não o encontro – das vertentes estética e relacional, ao estarem presentes nas dinâmicas socioculturais, inserindo-se uma na categoria da fruição, educação estética, conhecimento e história ou “o Teatro enquanto obra de arte e arte do espectáculo” e a segunda de ordem participatória, redescoberta de valores e enriquecimento artístico das comunidades ou “o Teatro enquanto animação sociocultural e animação sócio-educativa”. (Bento, 2003: 57). Sublinha que, independentemente de, no âmbito da Animação Teatral, se reconhecer o valor do teatro como meio para o fortalecimento e reabilitação da rede social e comunitária, tem a convicção de que o seu principal objectivo é que se concretize enquanto teatro. Apoia-se em Jean Duvignaud para constatar as virtualidades do teatro enquanto feito teatral que transborda da escrita dramática para a “representação dos papéis sociais, reais ou imaginários” e os benefícios sociológicos daí resultantes (contestação, adesão, participação) que reclama como sendo particulares ao teatro. Neste sentido Avelino Bento constata o quanto em animação sociocultural o teatro é esvaziado das suas “potencialidades de tempo e espaço efémeros.” (Ibid.: 100).

Schininà, em entrevista, deixa bem claro que o primeiro objectivo de TeS, junto dos não performers, não é a forma de arte mas sim a de relação e comunicação. Critica o desenvolvimento do processo com base na dimensão estética com o argumento de que esta minimiza a relação e a comunicação e logo afasta-se da realidade da comunidade onde

intervém. Aponta que nessa perspectiva subsiste também o risco de se parar o processo e de se criar um espectáculo caindo na formalização de um modelo estético com um ascendente forte sobre o processo, onde a expressão se sobrepõe à construção de uma nova relação com a sociedade. Schininà vai ainda mais longe ao reclamar a vertente comunicativa e relacional de TeS, por oposição a uma estética teatral moribunda que conteria “o fim do teatro”. Conclui que as componentes artísticas e estéticas no desenvolvimento de TeS são apenas contributos que servem como meio para atingir um fim: a “Lógica do Teatro”.181 (ENTR).

Tal como já foi explanado anteriormente, no capítulo sobre Estudos da Performance, a fronteira entre Performance Ritual (eficácia) e Performance Estética (entretenimento) é ténue. Neste contexto, a prioridade apontada por Schininà aparece-nos como excessiva.

A maior parte do painel opõe-se à divisão entre instrumental, artístico, político e social e opta por uma não demarcação clara entre o universo estético e relacional de TeS. Os elementos do painel são de opinião de que esta cisão é fruto da tendência cultural enraizada no ocidente, em que o mais importante é produzir e adquirir testemunhos do resultado dessa produção. Um dos entrevistados reforça que ambas as posições estão erradas quando a polémica surge entre o afectar (sensorial, artístico) e o efeito (instrumental, produtivo), pois a arte pela arte contém forçosamente o instrumental, enquanto a arte como instrumento esquece a arte. Tem a convicção de que focar no poder da arte como efeito potencia a capacidade de agir, no entanto, não interessa apenas o efeito mas também o como afecta. Como forma menos extremada de perspectivar o artístico ou o social, surge a opinião, entre diferentes entrevistados, de que esta divisão é artificial já que ambas as vertentes estão contidas no teatro e é precisamente na fusão de ambas que reside a força e singularidade da intervenção em TeS. Em consonância com investigadores como Nicholson ou Pagliarino, reivindicam a natureza estética do teatro como estando na origem do Modelo Comunicativo de TeS e do seu impacto junto de participantes e público. Pode-se afirmar que a fractura não surge da existência da Lógica do Teatro, mas onde esta se coloca como prioridade, ou na recusa de fusão com outros elementos teatrais identificadores do Modelo Comunicativo de TeS.

É de consenso entre a maioria dos entrevistados que a instalação de conteúdos sensoriais e artísticos, com o simbólico, o poético, o físico, o colectivo, entre outras

181

Schininà (2004), para além da entrevista, desenvolve esta questão no artigo da revista The Drama Review.

directrizes, favorecem a circulação de dinâmicas e de contacto e a emergência de um espaço de novos jogos relacionais que nunca teria oportunidade de surgir fora desse universo. Acrescentam ainda que a vertente estética está profundamente associada à social e política. Thompson e Plastow apelidam de “Poder do Teatro” a essa dimensão (ENTR).

No argumento de que TeS não alinhe numa estética tradicional e moribunda, reencontramos uma recusa a um determinado tipo de estética e não ao universo estético. Como tivemos oportunidade de focar no capítulo de Revisão de Literatura, vários autores (Valente, Bernardi, Dalla Palma, Schininà, Schechner, Thompson) estão de acordo que está ultrapassada a forma de teatro que assenta em processos de identificação e projecção, que manipulam a imaginação do colectivo através de espectáculos que contêm modelos de construção cénica que partem do autor, do dramaturgista e do actor. Estes espectáculos estão alinhados com uma mentalidade de liberalismo capitalista que, sub-repticiamente, afirma valores que contrariam a libertação do sujeito em termos ideológicos e de acção (Kershaw, Milling). A relação entre as dinâmicas de criação e as da performance espectacular assume outras centralidades e esbate a fronteira entre processo e produto, através dos modos de produção, da dramaturgia e dos processos de construção a partir da comunidade (Kuppers, Boon e Plastow). Estes são alguns dos elementos que favorecem uma diferenciação entre teatro de representação – aquele que pertencendo à indústria teatral suporta o status quo, intencional ou inadvertidamente – e teatro de presença – ou teatro alternativo, que é explícito na sua agenda política (dentro do conceito abrangedor de político de Freire).

Schechner (2006) é de opinião de que a questão não se coloca na morte da

performance estética mas antes no reconhecimento da diversidade das artes performativas

como integradora da actividade terapêutica, da acção política e da manifestação de recursos culturais significativos. Esta perspectiva é também fundamentada pelo que ficou dito acima sobre a porosidade existente entre drama social e drama estético.

Alberto Pagliarino (2005) sugere que se reequacione a origem da diferenciação, negando a oposição entre vertente relacional e vertente estética:

“A necessária diversificação não se deve colocar entre um teatro de arte e um Teatro Social, mas entre um teatro medíocre, conforme a um sistema massificante e despersonalizante, e um teatro tenso em direcção a uma forma de sublime, intimamente político, no sentido mais autêntico que esta palavra se possa atribuir.” (Pagliarino, 2005: 197)

De seguida, propomo-nos a focar em que consiste mais detalhadamente a Lógica do Teatro e o Poder do Teatro.

Lógica do Teatro

Um dos entrevistados define “Lógica do Teatro” ou “lógica de comunicação e relação do teatro” como contendo os princípios, teorias, processos e éticas da experiência teatral; tem como base a acção comunitária e social que, em épocas passadas, se gerava na e pela comunidade e que hoje é revisitada à luz do TeS: revê-se em intervenções da comunidade que se regem pelos elementos da experiência teatral. Esta perspectiva faz uma divisão clara entre modelo teatral – sobre o qual se constrói – e técnicas teatrais – que explora conforme entenda serem mais ou menos pertinentes. Segundo este investigador, técnicas teatrais são todos aqueles elementos que apesar de serem constitutivos do universo teatral excedem, complementam ou distinguem-se da vertente comunicativa e relacional, servindo apenas como suporte à “lógica do teatro”, sem qualquer relevância especial. A “lógica do teatro” é onde se firma uma acção comunitária com o teatro dentro, já que “o que se aplica é a comunidade” e não o teatro.

– Performance, Representação e Quotidiano

O termo Lógica do Teatro tem elementos em comum com o “Modelo Teatral” de Goffman (ENTR). Como julgamos ter ficado claro na Análise de Literatura sobre

performance social, é consensual no mundo do teatro contemporâneo que os contributos da

Antropologia e da Sociologia foram bastante profícuos através dos conceitos de “máscara” e

self, no de “espaço liminal” ou ainda da aproximação entre teatro e vida. Goffman baseou-se

nos princípios, em alguma teoria e em elementos que presidem à experiência teatral para explicar o que está na origem das atitudes performativas do sujeito perante o ambiente social circundante e como ocorre a reestruturação de papéis. A analogia com esse modelo advém essencialmente de dois factores, mas não se esgota neles: um é a centralidade dada à relação e à comunicação; o outro é a apropriação do mecanismo do modelo teatral, não só para explicar os ambientes ficcionais como motores do desenvolvimento das relações sociais, mas também para fundamentar a presença de elementos performativos nos pequenos rituais do quotidiano. No seguimento das várias críticas e contributos que ao longo dos anos foram feitas às teorias de Goffman, Marinis (1997) esclarece que a analogia não deve decorrer de

uma comparação com os elementos constitutivos do teatro tradicional, mas com aqueles mais abrangentes da performance artística.

– Espaço Liminal e Símbolo

Turner (1982) foi também importante não só pelo conceito de espaço liminal, mas igualmente por estabelecer – em conjunto com Schechner – a relação entre drama social e drama estético, entre eficácia e entretenimento, entre ritual e espectáculo. A Lógica do Teatro acompanha uma parte do quadro conceptual dos Estudos da Performance, sobretudo no que refere às teorias, processos e ética do drama estético. Da ênfase dada aos universos liminal e liminóide, fica mais evidente a ténue fronteira entre ritual e espectáculo, o interesse da participação do público, o lúdico, a criatividade, o jogo. Schechner (2006) realça a redundância de uma narrativa assente na linearidade do teatro tradicional e valoriza a enorme diversidade contida nos processos de construção da performance, ou ainda o potencial de transgressão que transborda destes processos para áreas de ordem ética e política.

A experiência accionada pelo modo liminal, subjunctivo e transicional do teatro (“e se…”) tem um reflexo profundo no indivíduo pela analogia com os elementos contidos no processo de construção identitária, o espaço seguro que promove, o jogo simbólico entre corpo/ mente que cria, a convocação de desejo, frustação, mimesis e a acção que envolve; a possibilidade de ser e não ser, ou de ser outros seres diversos de si é a ocasião de experimentação da máscara e de outros “eus”. Este jogo está presente na evolução da criança e na constituição da sua identidade através do que Winnicot apelidou “objecto transicional” na relação que vai construindo com a sua mãe (Schechner, 1989).

Neste contexto, a arte teatral assume-se pela sua função evocadora de emoções e paixões através de signos e símbolos que permitem um duplo movimento de penetração e distanciação da realidade; este duplo movimento agiliza o processo de controlo de sentimentos ameaçadores para o indivíduo graças à mediação de imagens, mas também à afirmação da sua subjectividade. Sisto Dalla Palma defende que um dos grandes méritos do teatro reside na mediação que o simbolismo convoca: “Creio que deveríamos usar a cartilha interpretativa de projecção como um momento ligado à afirmação da identidade subjectiva, doutro modo não conseguiremos compreender o teatro.” (Dalla Palma, 2002: 146).

– Coexistência Entre Performance de Eficácia e Performance de Entretenimento Segundo Pontremolli (2005), o teatro tem as suas raízes na experiência antropológica que é o rito e constitui a matriz de todas as formas espectaculares. Schechner afirma exactamente o oposto, quando diz que a origem do teatro não está no ritual. Ao realçar o entrançado existente entre o ritual e o teatro ou outro género estético e a polaridade em

continuum entre eficácia (mais associada ao ritual) e entretenimento (mais associado às artes

performativas), esbate-se a fronteira na categorização de ritual ou teatro. Tem a convicção de que todas as performances, sejam de ordem social ou artística, incluem ambos. (Schechner, 2006)182. Conclui que a designação de uma performance, enquanto “ritual” ou “teatro”, depende fundamentalmente da função a que se propõe e do contexto em que se realiza, a que já aludimos no capítulo de Revisão de Literatura.

A transformação que decorre dos rituais liminais, ou a transportação que decorre dos rituais liminóides, implica o comportamento restaurado (“restored-behaviour”) – em que os comportamentos já conhecidos são re-organizados – onde se encaixa o jogo e a criatividade. A transformação ou transportação subjacente aos processos de performance emana da “relação fluida” (Ibid.) existente entre os processos sociais e os processos estéticos.

Segundo Schechner, podem-se encontrar factores comuns entre ritual e performance estética. Um desses factores consiste nas várias etapas que presidem ao ritual e que têm correspondência com as da performance. No ritual, encontram-se as fases de separação, liminal – betwix and between – e de reagregação. Na performance estética, podem-se identificar as fases de aquecimento, performance pública, principais eventos e contextos e retorno à calma (cooldown). Outro factor comum é o de poder ocorrer a emergência da Communitas Espontânea 183. O processo que eleva os participantes a algo de comum é gerado pelo limen ritual e em performance estética é produzido pelo “Coro” e pela criação do universo subjunctivo. Turner refere que um dos mecanismos dos processos do ritual é “uma desconstrução e recombinação lúdica de configurações culturais familiares”, que Schechner apelida de arte. O embodiment é também um elemento transversal ao ritual e à

performance, em que o corpo se torna o local de origem e de filtração da experiência, tanto a

nível sensorial como mental.

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Schechner alerta, no entanto, para não se cair no erro de uma total correspondência entre ritual e teatro. 183

Communitas: do conceito de Turner, como sendo a realização da experiência mais significativa e gratificante das relações humanas de reconhecimento recíproco e pertença, acontece quando um grupo “apanha no ar o fogo do espírito que o congrega”, abolindo estatutos, diluindo cada uma das entidades em todas as outras.

Em função do que ficou acima descrito, no conceito da Lógica do Teatro, o drama social (eficácia) e o drama estético (entretenimento) garantem o mútuo equilíbrio. É pela presença de ambos que será possível propor alguns formatos performativos e/ ou teatrais que se tornam significativos em termos relacionais e artísticos para o grupo e a audiência em que o processo e o evento têm lugar. Nesta perspectiva, o Teatro Social reivindica-se como espaço de transgressão que favorece a descoberta do indivíduo, das suas fronteiras, dos seus papéis e das suas máscaras: fornece o espaço seguro e a carga simbólica favorecedora da reconstrução de papéis, criação de pontes e do bem-estar entre o indivíduo e a comunidade. Esta Lógica perspectiva o teatro como acontecimento liminóide, com um papel activo na redefinição simbólica e política do colectivo, ligando a experiência dentro do grupo ao contexto sociocultural, económico e histórico de onde o grupo emerge e do qual se mantém (Schininà, 2004a).

Durante o laboratório e a performance do “Caleidoscópio” emergiram indícios do universo liminóide, associado à eficácia, inclusão e encontro, como ambiente seguro e contendo simbologia própria184 (CAL).

O Poder do Teatro

Um dos elementos do painel referiu que a presença de elementos teatrais não garante por si mesma a característica artística e relacional que a maior parte dos entrevistados defende: por vezes, assiste-se à introdução desses elementos de forma a embelezar uma apresentação cuja prioridade é a mensagem e a instrumentalização do teatro.

Alguns dos indagados identificaram TeS também pela presença da catharsis, da poética teatral, ou de um “teatro da transposição (onde prevalece) uma espécie de distanciamento (que contém) o belo, mas não é esvaziado de substância, (nem de) de imaginário (nem de) de humor.” (ENTR). Neste contexto, interessa criar no grupo espaços de

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Shechner identificou a existência dos seguintes elementos como referentes ao potencial dos processos liminóides na performance: “O território é precário. (…) Quanto maior se torna, maior é o desafio, mas também maior é a dúvida e a ansiedade que evoca. (…) Quando a confiança (do público) prevalece não há nada que os performers não possam fazer. (…) Vibra uma simpatia/ / empatia especial entre performers e espectadores; (os performers e os espectadores) acreditam e desacreditam ao mesmo tempo (…) O palco, sendo ou não sagrado, é sempre especial. (…) Durante a performance (…) a experiência é de sincronicidade, quando o fluxo do tempo vulgar e o fluxo de tempo da performance se encontram e se eclipsam um ao outro. Este “eclipse” é o “momento presente”, o êxtase sincrónico, o fluxo autotélico, dos estados liminais.” (Schechner, 1985).

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