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Escala entre Não-actuação e Actuação

III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO: RAÍZES DO TEATRO SOCIAL

3.5. Exemplos de Metodologias de Teatro para e com a Comunidade

3.5.1 Augusto Boal: Intervenção e Transformação

3.5.1.1 Modelos de Acção e Influências Teóricas no Teatro do Oprimido

Como homem de teatro que era, Boal desenvolveu, no âmbito do Teatro do Oprimido, exercícios para actores e não-actores, que posteriormente compilou num dos seus mais importantes livros, “200 Exercícios e jogos para o Actor e o Não-Actor, com Vontade de dizer Algo Através do Teatro” (1983). Pretendiam integrar técnicas facilmente replicáveis, de forma a poderem ser adaptadas a diferentes contextos.

O TO, na perseguição desses propósitos, destacou-se ao criar modelos (“transitivos”) práticos, através de sistemas de actuação elementares, onde foi relevante a selecção de conteúdos e discursos do interesse de todos. Estes modelos pretendiam evidenciar-se como “momentos transitivos”, mais do que como “modelos intransitivos” (Schutzman e Cohen- Cruz, 1994). Daí a noção de “transitivo” associada à flexibilidade, já que é precisamente a reprodução “intransitiva” – que se cristaliza e não transita – que leva à acomodação. Nesta perspectiva, a sua aplicação foi muito abrangente, com impacto em várias áreas como a educação, o teatro e comunidade, a Animação Teatral, entre outras.

Muitos destes jogos, por sua vez, desdobravam-se e reagrupavam-se em metodologias e conceitos mais adequados à situação particular em que eram implementados, que deram origem a diferentes modalidades de onde se destacam o “Teatro do Invísivel”, o “Teatro Imagem”, o “Teatro Fórum”, ou o “Teatro Legislativo”. As técnicas de desenvolvimento do espectáculo assentam na linguagem corporal e na metáfora. A sua prática é orientada por qualidades de jogo teatral não convencional, a animação mobilizadora da participação, o carácter interactivo e os temas significativos.

Dilui a linha tradicionalmente demarcada entre o actor e o espectador, em que são factores importantes a manifestação de comunalidades entre actores e não-actores, ou a

evidenciação da acessibilidade ao acto de representar. Estas questões estiveram na da criação de estratégias facilitadoras à participação do espectador e da desmistificação da especialização do actor, dentro do que Boal apelidou de “espect-actor”. Cohen-Cruz (1994) é de opinião que o TO vai mais longe ao incluir o espectador como um activo colaborador artístico: tem por princípio que a criatividade do actor não deve ser canalizada apenas para a interpretação, mas também para a co-autoria, ou co-encenação. Esta inclusão é o que Boal considera ser uma influência de Brecht, ou ainda de manifestações culturais festivas como o Carnaval.

Outros dos seus conceitos-chave são: o anti-modelo, o polícia na cabeça, a dinamização, a Dramaturgia Simultânea, a Aprendizagem Transitiva e a Aprendizagem Intransitiva, o Joker, o Sistema do Joker, o Arco-Íris do Desejo (Schutzman e Cohen-Cruz, 1994).

As sessões dividiam-se usualmente em três etapas: informação, jogos e exercícios estruturados (Kuppers, 2007a). Têm em comum estratégias e actividades que envolvem directamente a audiência no espectáculo: seja por curtos exercícios que mobilizam o público para o que está em vias de se realizar; seja por propostas que partem dos membros do público a serem desenvolvidas pelos actores “em palco”; seja pela intervenção directa de um ou mais membros do público na acção que se desenrola diante de si, onde o não-actor, agora actor, tem a oportunidade de alterar o curso dessa acção dentro do que, com base numa visão crítica do acontecimento, considera nessa situação mais pertinente em termos relacionais, sociais e ideológicos. Nomeadamente no Teatro Fórum, as acções teatrais propostas têm um paralelo directo com histórias sociais de opressão, de manipulação de perspectivas e de construções mentais que, de alguma forma, habitam a realidade dos membros do público. No entanto, Boal considera que o potencial do Teatro Fórum não reside apenas no conteúdo da situação mas, sobretudo, na inversão de papéis sociais convencionais:

“Desde o primeiro momento, a primeira transgressão, quando o espect-actor diz “Stop!” o espectador desloca-se do papel de assistente passivo. Profana o altar onde os padres dizem a missa, ele próprio dinamiza-a. Quando este espectador sobe ao palco para oferecer uma alternativa, seja ela boa ou má não importa – o que ele está a mostrar é que nenhum modelo de comportamento é único, há sempre alternativas.” (Taussig e Schechner, 1990: 27)

Esclarece acerca do Teatro Fórum que uma das principais características reside na desconstrução da peça proposta pelos artistas, para a sua posterior construção e modificação através dos contributos do colectivo. É neste processo que emerge a aprendizagem pedagógica em colectivo, que difere da aprendizagem didáctica (Boal, 1982).

Influência de Paulo Freire

Em termos conceptuais, a abordagem de TO tem principal inspiração em Paulo Freire (1975). Freire sintetizou a sua perspectiva de “educação como prática da liberdade” no livro

Pedagogia do Oprimido, onde enuncia o papel do educador do seguinte modo: “A tarefa do

educador dialógico é, trabalhando em equipa, interdisciplinar este universo temático (dos temas geradores), recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, não como dissertação, aos homens de quem recebeu.” (Freire, 1975: 146).

O seu sistema, que se desenrolava em espaços não oficiais, surgiu como resposta à necessidade de alfabetização dos camponeses, bem como à situação de marginalização e opressão em que se encontrava um grande número de populações desfavorecidas. Na base da “Pedagogia do Oprimido”, estão conceitos como consciencitização, dialogicidade,

77empowerment e transformação, que reforçam a sua convicção de que os homens só se

libertam em comunhão (Torres, 1980).

Profundamente influenciado pelo pensamento de Karl Marx e a noção de “praxis social”, de filósofos como Lucien Goldman, Freire elaborou modelos de pedagogia activa através dos quais as abordagens normalizadoras e autoritárias de aprendizagem, encaradas como concepções “bancárias” da educação utilizadas como instrumento de opressão, eram substituídas por outras participatórias e críticas, onde as pessoas eram encorajadas a manifestar os seus pensamentos e a trocar ideias.

Tinha a convicção de que os indivíduos oprimidos continham o potencial de transformar as situações que os limitavam, e as estruturas coercivas em que estavam submersos, em outras mais favoráveis a todos. Defendia que a passividade era alimentada pela situação de poder do opressor e pela visão depreciativa que perpetuava junto do oprimido, em que este, ao sentimento de medo, acrescentava a interiorização da imagem de inferioridade. Esta relação de prepotência fomentava a aceitação de discrepâncias sociais e de hierarquias, a ausência de conhecimento e a presença de comportamento acrítico por parte

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Denominado “empoderamento” em língua brasileira. Por não ser pacífica esta tradução em termos linguísticos, optou-se por manter, ao longo do texto, o termo em inglês.

dos mais desempoderados. Através da “consciencitização” de que estava imbuído o método proposto por Freire, as populações eram estimuladas a envolverem-se no seu próprio processo de libertação, através da aquisição de instrumentos de análise crítica e de acção; este processo estava alicerçado na ideologia da luta de classes e da solidariedade necessárias à inversão da situação de desvantagem e transformação da sociedade. Através do gerar colectivo das situações-problema e da sua interrogação, os grupos locais tornavam-se os principais pivôs de identificação de problemas, de resistência e transformação social; a sua metodologia operava de modo a realçar as contradições existentes, que se tinham tornado invisíveis através do manejo de poder e conhecimento, perpetrado no regime hegemónico. Simultaneamente, debruçava-se sobre o significado desse poder e que mecanismos activavam no seu funcionamento (Guba e Lincoln, 1994).

Partindo da ideia de que a educação se devia debruçar sobre o processo e a busca dialogada desse processo e respectivos temas – mais do que sobre a obtenção de resultados quantificáveis –, avançou com a noção de “temas geradores, ou temática significativa” (Freire, 1967) que, por sua vez, servia o processo de descodificação da realidade e de percepção de um novo conhecimento (Kamberlis e Dimitriadis, 2005). Ainda a este propósito, propôs uma metodologia de investigação e de aproximação aos camponeses, através da recolha etnográfica informal de detalhes apenas aparentemente menos importantes, sugerida pelo sociólogo Wright Wills (Freire, 1975).

Influência da Psicoterapia de Moreno

Tornou-se evidente que apesar, do espírito democrático subjacente às sociedades da Europa e da América do Norte, os sujeitos se mantinham distantes no que respeitava a envolverem-se num espírito de colectivo ou em terem uma voz. Boal concluiu que existia uma opressão que não era explícita e vinda do exterior: esta forma de opressão com a qual se deparava era mais subtil e interiorizada. Resultava, por um lado, de valores conservadores enraizados, que convidavam à comodificação e, por outro, de relações estereotipadas que acabavam por se constituir dogmas de moral e comportamento. Este tipo de mentalidade, postura social e atitudes era transmitido ao longo da vida por pais, pares, professores, media, de tal modo que, sub-repticiamente, direccionava e limitava as acções do sujeito (“o polícia na cabeça”). Boal (1990), sob a influência de sua mulher, adquiriu novas perspectivas sobre a pertinência da Psicoterapia de Moreno nesse tipo de situação. A visão de Moreno levou-o a considerar as realidades interiores e psíquicas do indivíduo como um dado fundamental nos

processos de trabalho. Na base estava a convicção de que, sendo o teatro e a vida conflitos, o objectivo seria transitar da situação de indiferença para a de humanidade, da situação de monólogo para o restabelecimento do diálogo.

Defendia que a integração das realidades da vida psíquica era incontornável como suporte à acção do sujeito na mudança do mundo, de si mesmo e da relação com esse mundo: tanto os aspectos sociais, como os da vida interior, eram essenciais e complementavam-se no processo de activação de mecanismos de acção do sujeito na sua emancipação, solidariedade e transformação social. Chegou à importante conclusão de que a terapia e o teatro se sobrepunham, o que proporcionou um novo rumo à sua pesquisa, que se revelou mais adequado aos grupos a que se dirigia (Feldhendler, 1994). No entanto, faz uma distinção entre terapia tradicional e aquela que preside ao TO, nomeadamente na relação que se estabelece entre terapeuta e cliente; no foco em tarefas de cura e/ ou alívio de sofrimento, ou outros sintomas de desordem emocional; no estabelecimento de um tempo pré-definido para o processo de recuperação. A abordagem de Boal centra-se, sobretudo, no potencial terapêutico de ordem político-social, de transformação das relações entre o indivíduo e a sociedade. Considera que o interesse do efeito terapêutico do teatro reside na dinâmica de ver e ser visto que possibilita novas representações78 de si mesmo e do outro; este processo, ao activar uma mudança de perspectivas, cria o espaço para a emergência e manifestação de desejos de mudança.

É através do método de teatro e terapia e da ocorrência do “espaço estético” que a mudança e a “re-criação” do quotidiano têm lugar. Este conceito tem semelhanças com o

locus nascendi de Moreno, ou o “espaço transicional” de Winnicot (1951), onde persiste a

alteralidade constante entre ficção e realidade. O espaço estético funda-se no local específico ao acontecimento teatral, de “re-presentação”, com o potencial de equacionar os efeitos e interacções dessa recriação, à medida que esta vai emergindo e tomando forma. O processo criativo, a experimentação, a concretização da acção e as várias alternativas de transformação constituem-se elementos que despoletam a postura crítica e, consequentemente, a mudança de comportamento. Boal define do seguinte modo o espaço estético: “O espaço estético existe todas as vezes que existe separação entre o espaço do actor e o do espectador, ou a dissociação de dois tempos. (…) Coincidimos com nós próprios

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Representação é entendida neste contexto no seu sentido mais abrangente: não apenas verbal ou visual, mas também como produto de uma ideologia, num vasto esquema que justifica a percepção do mundo envolvente, as suas trocas, relações e comportamento (Denzin e Lincoln, 2005).

se, no presente em que vivemos, integramos a recordação do passado e a imaginação do futuro” (Boal, 1990: 28). Segundo Boal, o espaço estético contém a mesma plasticidade dos sonhos, pela simultaneidade da ficção e da realidade, pela interligação entre memória e imaginação, pela possibilidade de descoberta, condensação e transformação do espaço, do tempo, das pessoas e dos objectos. Afirma ainda que é o espaço estético que confere ao teatro as propriedades que o tornam forma de conhecimento: “O espaço estético possui propriedades gnoseológicas, quer dizer, propriedades que estimulam o saber e a descoberta, o conhecimento e o reconhecimento.” (Ibid.: 29). Aponta igualmente que é no espaço estético que emerge a dicotomia do actor, onde a pessoa que representa é simultaneamente o personagem representado e onde as emoções que representa se tornam experiências reais: “O espaço estético é dicotómico e cria a dicotomia, e todos aqueles que o penetram tornam-se dicotómicos.” (Ibid.: 33). Por fim, assinala a sua qualidade telemicroscópica, ou a faculdade de alterar escalas e distâncias. Dá particular relevância ao envolvimento sensorial que acontece no actor nesse espaço, já que é através dos sentidos e não através dos mecanismos de racionalização que a experiência se torna significativa e é validada. É através do encontro entre a realidade subjectiva e a realidade objectiva – que acontece na acção em cena – que é criado um espaço de aprendizagem e transformação:

“O desdobramento, que com certeza é também possível noutros espaços, é aqui, em cena, inevitável, intenso: estético. Estes processos de conhecimento, esta terapia específica, artística, são constituídos não apenas por ideias, mas também por emoções e sensações. O teatro é uma terapia na qual entramos de corpo e alma, soma e psique.”

(Boal, 1990: 40)

Nesta perspectiva, é no encontro entre “soma e psique” que o sujeito se torna protagonista activo no caminho a dar à sua vida, em performer com voz própria na transformação da sociedade.

Opõe-se à catarse proposta em Aristóteles, de identificação com o herói da tragédia que considera purificar a necessidade de mudança, onde a frustração dá lugar a um sentimento temporário de alívio e tranquilização; esse sentimento em nada colabora com a necessidade de urgência de transgressão, ao contrário, anestesia essa necessidade. Propõe a catarse da acção que contém a dinâmica de libertação, pela purga daquilo que impede o indivíduo de agir. Faz um paralelismo com a catarse médica pelo expelir do veneno que foi

introduzido no corpo: “Se você toma um veneno, precisa de algo para o expelir. A catarse no sentido médico é para você se purificar de algo introduzido no seu corpo, ou produzido pelo seu corpo. Claro que neste sentido estou a favor, você tem que se desembaraçar do que lhe faz mal.” (Taussig e Schechner, 1994: 27). A catarse defendida por Boal consiste em que tanto o sujeito como o público ultrapassem os medos e bloqueios que impedem que se sintam estimulados a participar na subversão de estruturas sociais de coerção.

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