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Escala entre Não-actuação e Actuação

III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO: RAÍZES DO TEATRO SOCIAL

3.5. Exemplos de Metodologias de Teatro para e com a Comunidade

3.5.2 Eugénio Barba: a Troca e o Processo no Actor

A postura intercultural, incrementada em grande parte por Barba, influenciou muitas das práticas e teorias teatrais contemporâneas que, por sua vez, se reflectiram no trabalho com a comunidade.

Marinis (1997) afirma que as perspectivas de Barba sobre o teatro, o actor e os seus processos integram-se no movimento do Novo Teatro e apresentam-se como alternativas conceptuais e de intervenção social e cultural. Schechner (2000) refere que Barba não deve ser colocado sob a influência de uma corrente específica do teatro, já que integra no seu trabalho muitas das várias tendências do Teatro de Vanguarda.

Já focámos anteriormente o âmbito da pesquisa teatral na qual Barba foi uma figura de destaque. Nessa pesquisa podem-se identificar três áreas principais:

– A Antropologia Teatral, que foi foco de estudo neste capítulo, centrada na sistematização de “princípios de orientação” acerca da actuação do actor e do acto performativo, procura estabelecer o princípio biológico do corpo “extra-quotidiano” do actor, com base na “pré-expressividade” numa “abordagem etnológica” (Pavis, 1997: 19).

Para demonstrar a validade de alguns elementos operativos da “pré-expressividade” e proceder à análise dos elementos constitutivos do processo dos actores, desenvolveram-se laboratórios criativos diante de um conjunto de investigadores colaboradores da ISTA (Barba e Savarese: 1985).

– A aplicação prática a actores e nas produções artísticas do Odin Teatret de princípios e metodologias de Antropologia Teatral, que decorrem das observações e experimentação com base nas tendências no teatro ocidental contemporâneo e do teatro oriental tradicional (Barba, 1989).

– O “Terceiro Teatro”, que pretende formar uma rede entre grupos com uma preocupação sobre a função social do teatro e preservar importantes princípios de intervenção na comunidade, como a valorização da relação com o contexto, ou a integração de significados culturais. Estes grupos constituem-se propostas alternativas de colectivo artístico e estão associados à experimentação teatral. Colocam-se à margem da acomodação que subsiste à elite cultural (quer esta tenha índole vanguardista, ou não), não sendo institucionalmente reconhecidos como detentores de carácter profissional (Watson, 2000).79

É transversal e fundamental em qualquer uma destas áreas a interculturalidade como território de investigação, interrogação e exploração. A esse propósito, Barba afirma que o encontro entre Oriente e Ocidente gerou dinâmicas enriquecedoras às várias perspectivas de origem:

“No reencontro entre Oriente-Ocidente, a sedução, a imitação, as trocas são recíprocas. Várias vezes invejámos nos orientais um saber teatral que transmite de geração em geração a obra de arte viva que é o actor; por sua vez, eles invejaram no nosso teatro a capacidade de afrontar temas renovados sem fim, de acordo com a época, acrescentando variantes aos textos da tradição por via de interpretações pessoais que têm frequentemente a energia da conquista formal e ideológica.” (Barba, 1989 : 19)

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Um dos produtos recentes desta tendência é o “Teatro como Interferência”, de Barba, com referência no site do Odin Teatret: www.odinteatret.com e no artigo de Dan Olsen, “A Survey of Some International Projects in Response to Ideological Constraints”, apresentado em 2009 na Conferencia da International Federation of Theatre Research (IFTR) em Lisboa, Portugal.

3.5.2.1 Influências Teórico Práticas em Barba

Como referências de fazedores de teatro ocidental do século XX, encontram-se Stanislavsky e a procura da interioridade e verdade no jogo do actor, Meyerhold e o conceito de “ciclo de actuação” e exploração das acções físicas, Artaud e o retorno às origens e ao sagrado (Milling e Ley, 2001), e Jacques Copeau e o encontro com as comunidades e a noção do director-pedagogo. Era comum a este grupo de directores, nos quais Barba se reviu, a visão acerca da centralidade do encenador no processo de criação teatral do actor e do espectáculo.

No seu percurso, Barba (1989) atribuiu relevância tanto ao teatro ocidental quanto ao oriental: “O Kathakali e o Nô, o Onnagata e o Barong, Rukmini Devi e Mei Lanfang estavam presentes ao lado de Stanislavsky, Meyerhold, Eisenstein, Grotowski, ou Decroux desde que comecei a fazer teatro.” (Ibid.: 18). Paralelamente, Barba recuperou da figura de Mestre que preside, na abordagem oriental, também já investigada por Grotowsky, a inúmeros princípios que estabelecem a relação entre actor e encenador, bem como do tipo de disciplina, entrega, confiança mútua e tempo de dedicação à exploração de técnicas “em profundidade”. Apesar de ser evidente a ascendência do Mestre sobre o discípulo, Barba insiste na vertente de pesquisa autodidacta que dá espaço à descoberta do ethos do actor.

O mestre de Barba foi Grotowsky, precursor de uma pesquisa rigorosa e sistemática sobre a arte do actor e os seus processos criativos. Brook escreve a este propósito que “ninguém mais no mundo, que eu saiba, depois de Stanislavsky, investigou a natureza da representação do actor, o seu fenómeno, o seu sentido, a natureza e a ciência dos seus processos mentais, físicos e afectivos tão profunda e completamente como Grotowsky.” (Brook in Grotowsky, 1975: 9).

Barba herdou a visão de sagrado que preside à prática teatral e aos processos criativos do actor, bem como a ênfase dada à ligação profunda entre o orgânico e o artificial que Grotowsky descreveu nos seus livros, “Théâtre des Sources” e “Objective Drama” (Marinis, 1997). Grotowsky procurava no trabalho com o actor o rigor e a disciplina da execução técnica, a qualidade da entrega, a procura da “verdade” e da intensidade em cena, a fisicalidade e a acção física como desencadeadoras da criatividade. Ao recuperar vivências pessoais do actor para a acção teatral, pretendia explorar a ligação entre a acção física e os processos internos do actor, processos esses que poderiam ser influenciados pelas suas reacções a um estímulo externo. Uma das marcas mais relevantes da sua investigação surgiu da convicção de que o actor revelava a sua própria identidade através do desempenho do

papel durante a representação (Grotowsky, 1975). A abordagem parateatral desenvolvida por Grotowsky no “Teatro das Fontes” teve grande influência em Barba.

A influência de Grotowsky ficou plasmada no trabalho com o colectivo, na utilização da improvisação, na relevância atribuída ao processo, na experimentação em formato de laboratório de investigação, num retorno às origens, ao despojamento, “às fontes”, e na procura da convergência entre o actor e o espectador (Drain, 1995). No entanto, enquanto o primeiro procurou nesta convergência a catarse do actor que, por sua vez, induz a catarse do espectador, Barba explorou a convergência entre o actor, o seu papel e o público.

3.5.2.2 Alguns Aspectos da Abordagem Teatral de Barba

Segundo Watson (2000), num primeiro período, Barba assumiu-se como “mestre” do grupo, com o seu “olhar exterior” e reflexivo, na procura e aprimoramento de técnicas que respondessem às exigências cénicas (1964-1972). Num período subsequente (1972-1981), os actores partiram à procura de outras abordagens sobre as quais consolidassem o seu ethos, consolidação essa que pressupunha dominassem e fossem especialistas da técnica sobre a qual queriam compor. Para isso, observaram o comportamento de actores e artistas de outras culturas, nomeadamente a oriental e de áreas parateatrais.

Essas viagens permitiram igualmente a recolha de material para uma nova perspectiva de aplicação dos “princípios que retornam”. Surgiram novas possibilidades de utilização de voz, de recuperação de técnicas de domínio físico, de exploração de princípios entre actor e acção, bem como da dramaturgia da acção e encenação, da relação com o texto escrito e uma definição mais clara de “obra aberta” e da tónica da observação e recolha de dados das improvisações. A abertura à influência inter-cultural e a atenção dedicada à integração de novos signos performativos tornaram-se definitivamente uma das marcas da investigação em termos operativos e conceptuais.

Para os actores atingirem os objectivos de domínio físico e mental era necessária uma exercitação diária e de uma entrega tal que o grupo foi acusado por muitos de se “enclausurar” numa tarefa que não comunicava com quem não pertencesse a essa comunidade de artistas. Desde 1981, o treino foi praticado com base numa estruturação individualizada nesses princípios. Os exercícios baseavam-se na utilização do “eixo fixo” como alicerce à descoberta pessoal, procurando afastar-se da simples mestria, ou savoir faire técnico. A noção de “eixo fixo” e a delineação dos seus constituintes como um dos alicerces

da Antropologia Teatral foram fundamentadas por Taviani (1986) como um sistema de orientação que serve de bússola a um percurso pessoal.

Barba estabeleceu uma forte interdependência entre técnica do actor, domínio do corpo e capacidade de ultrapassar limites: “uma utilização particular do nosso corpo ou melhor, romper com automatismos e entrar numa segunda cultura física‟.” (Volli, 1985: 117).

Marinis (1988) resume a evolução do training como a transformação que mobilizou diferentes ângulos de análise “do training colectivo ao training individual, do training como instrumento para adquirir capacidades técnicas, ao training como processo de autodefinição.” (Ibid.: 237). Ou seja, o training ultrapassou o “mito da técnica”, transformou-se, do seu significado de disciplina física rigorosa por si mesma, num novo significado em que o training é fundamental “à dialéctica constitutiva de qualquer bom processo criador: quer dizer, à dialéctica entre disciplina e espontaneidade, entre forma fixa e reacção orgânica.” (Ibid.: 238). Tal como Grotowsky, quando procurou um actor específico capaz de cumprir os objectivos a que o “Teatro Pobre” se propunha, a questão não se colocava na técnica, mas na ética, ou seja, em “formar actores que estejam em condições de conceber e viver o seu trabalho de um modo diferente e melhor que o visual.” (Ibid.: 115). Transformou-se igualmente no seu significado cénico, evoluindo de uma distinção entre as duas vias (uma, o training e, outra, os ensaios e o espectáculo) para uma posterior utilização dos exercícios e improvisações como componentes do espectáculo.80

Alterou-se o paradigma de criação teatral, no que respeita à emergência da obra, aos elementos centrais do processo de descoberta e de composição; esbateu-se a diferença entre dança e teatro, explorou-se uma outra abordagem do personagem, entre outras alterações de centralidades no processo de construção performativa:

“Um trabalho de mais de vinte anos no Odin Teatro conduziu-me, através de uma série de soluções práticas, a não dar grande importância à diferença entre aquilo a que apelidamos “dança” e o que chamamos “teatro”; a não aceitar o personagem como unidade de medida do teatro; a não fazer coincidir automaticamente o sexo do actor e aquele do personagem; a explorar a riqueza sonora das línguas, a sua força emotiva capaz de transmitir informações para além do seu valor semântico.”

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Alguns dos elementos a explorar foram a precisão física, o equilíbrio da tensão corporal e a sua relação com o relaxamento, impulso e aceleração vs contenção, “energia de luxo”, percepção rítmica e “sats”, inscritos nas noções de fluxo e de organicidade.

(Barba, 1989: 21)

Barba explorou a simbiose entre a utilização do corpo como texto – encarando o corpo inteligente do actor como portador de vários níveis de “discurso”, de “significados”, a abordagem do personagem através do “Como” em vez de “O Quê” e a sua composição com base na criação do “performance text”, como contendo diferentes corpos e acções numa dimensão tridimensional que favorece a pluralidade de significados e de interpretações: assim, o “performance text” é indissociável de um determinado processo de criação e da relação com o público (“espaço de controlo”) e da ligação que pretende atingir com este. A nova postura do fazer teatral revela-se no equilíbrio que estabelece entre a intriga e a dramaturgia das acções, bem como na dialéctica que promove entre complexidade da simultaneidade (com a fragmentação, a variação de ritmo, os pontos de ruptura) e linearidade do encadeamento dessas mesmas acções (Barba, 1985). “Criar a vida dramática é não somente entrançar as acções e as tensões do espectáculo, mas também aumentar a atenção do espectador, os ritmos e as tensões desta atenção, sem procurar impor-lhe uma interpretação.” (Barba, 1985: 189).

3.5.2.3 Influência no Teatro e Comunidade

Alguns elementos extraquotidianos, definidos por Barba e as suas equipas, podem ser um ponto de referência para uma prática mais inclusiva de não-actores, já que o “pré- expressivo” nos apresenta uma abordagem da actuação teatral que se debruça sobre o indivíduo e o seu ethos e o reclama como central a uma pedagogia do actor. A influência de Grotowski afirma o quanto a representação do papel é um trampolim para a revelação da identidade do actor em cena. Fica criado um espaço para a passagem do não-performer a

performer, não do ponto de vista do domínio das tradicionais técnicas do actor, mas

sobretudo do ponto de vista ético apontado por Grotowsky, ou seja, da manifestação da pessoa/ performer e da compreensão do que constitui o universo não-quotidiano e comunicativo onde o performer se localiza. Através de Oriolli (2007) a perspectiva psico- física de Barba deu origem à Teatroterapia.

Para além disso, os moldes de desenvolvimento e operacionalização do Terceiro Teatro permitem criar uma rede de divulgação dos produtos teatrais pelos diferentes públicos e populações, com outras visões sobre o mercado cultural, que beneficiam a sobrevivência de propostas de Teatro Alternativo, à margem do sistema de poder governativo.

É de especial importância, como foi referido anteriormente, todo o contributo de Barba sobre o mecanismo de troca e encontro que pode presidir à mostra dessas produções culturais. Através deste conceito, Barba ampliou a perspectiva de que o teatro não se deve limitar às convenções de quem o exibe, afirmou o seu poder transgressor e valorizou o seu potencial comunicativo. Em certos formatos, em populações com hábitos culturais diferentes, sugeriu a aceitação de reacções e formas de estar frente ao espectáculo que decorrem de comportamentos desse público específico, que integram positivamente a

performance, dilatando-a do espaço do palco para os acontecimentos fora dele.

Notas Finais

Sem dúvida que os contributos de Barba abriram novas possibilidades de entrever o “tecido” da relação entre actores e público, ou do significado de todo o acto performativo (Watson, 2002), o que permite, por sua vez, identificar elementos passíveis de aplicação a outras áreas de teatro não profissional, ou da terapia. Apesar das críticas que podem ser tecidas a Barba, sobre a tendência para se isolar num aprimoramento da técnica do actor que exige uma dedicação quase obsessiva ao treino e à figura do mestre, não deixa de ser verdade que este autor investigou vários conceitos e práticas passíveis de serem adaptados a outros contextos. O mesmo é válido para a construção das performances num contacto próximo com as audiências, os locais e os espaços não teatrais, de onde se destaca os seus recentes trabalhos no “Teatro de Interferência”. Neste formato, Barba investiga e elabora criações com base no cruzamento entre manifestações espectaculares com uma forte carga simbólica e cultural e elementos do quotidiano que geram anacronismos que interferem na rotina diária de um determinado lugar. Barba é um importante marco no desenvolvimento de pesquisas, modelos e exercícios que estimulam a presença em palco, o conhecimento que o actor tem de si e a exploração da dimensão psico-física, para falar apenas nos elementos de maior destaque. Providenciou igualmente formatos alternativos de aproximação, particiação e comunicação pelo e dentro do teatro. Por fim, há a considerar o seu contributo para a investigação do feito teatral como área particular e artística que se distingue das Ciências Sociais e, como tal, merecedora de instrumentos próprios de observação e análise (Barba, 2008). Na continuação desta investigação, haverá oportunidade de elencar mais detalhadamente elementos constitutivos do Teatro Social e da sua operacionalização na comunidade, que decorrem do ethos defendido na visão de Barba (Malini, 2007).

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