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Escala entre Não-actuação e Actuação

III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO: RAÍZES DO TEATRO SOCIAL

3.2. Estudos da Performance

3.2.3. Pós-Modernismo, Pós-Estruturalismo e Performance

Segundo alguns autores, a génese do que constitui a performance é acompanhada por um distanciamento do paradigma do modernismo, em que um ideal abstracto de universalidade do Homem dá lugar a uma procura ontológica das várias pessoas que são a audiência. Esta análise não consiste na unificação, mas na convivência entre diferenças (Harvey, 1994).

Harvey, no livro “A Condição Pós-Moderna” (1994), alude a estes temas no campo literário com McHale (1987) e diferencia modernismo e pós-modernismo: enquanto o modernismo está sob influência de uma “dominante epistemológica”, com ênfase na ideia de que realidades diferentes podem coexistir e interpenetra-se, o pós-modernismo decorre de uma “dominante ontológica”, “com uma estreita atenção a “outros mundos” e a “outras vozes” que há muito estavam silenciadas (mulheres, gays, negros, povos colonizados com a sua História própria).” (Ibid.: 47), alicerçando-se em campos tão distintos como a

Linguística, a Antropologia, a Filosofia, a Retórica, a Ciência Política e a Teologia. Devido a essa riqueza de campos, surgem perspectivas que, apesar de idênticas no conteúdo, desenvolvem lógicas de pensamento em função da área em que são geradas. Harvey continua, dizendo que: “Os sentimentos modernistas podem ter sido solapados, desconstruídos, superados ou ultrapassados, mas há pouca certeza quanto à coerência, ou ao significado dos sistemas de pensamento que possam tê-los substituído” (Ibid.: 47). Após uma breve incursão no quadro de Hassan, onde estão plasmadas as polaridades entre modernismo e pós-modernismo, Harvey enuncia como principais características a efemeridade, a fragmentação, a descontinuidade, o pluralismo de mundos e o caos, qualidades essas que não se opõem à realidade mas antes entrecruzam a vida moderna. A discussão não reside em saber se estas qualidades fazem, ou não, parte do quotidiano – já que esse é um dado adquirido e fundamentado, tanto por filósofos como por alguns cientistas – mas em encontrar uma epistemologia que se emancipe do pensamento racionalista e que acolha essas e outras qualidades não-racionalistas. Para reforçar as suas palavras, Harvey cita Foucault (1983), que convida a:

“desenvolver a acção, o pensamento e os desejos através da proliferação, da justaposição e da disjunção‟ e a „preferir o que é positivo e múltiplo, a diferença à uniformidade, os fluxos às unidades, os arranjos móveis aos sistemas. Acreditar que o que é produtivo não é sedentário, mas nómada.”

(Harvey, 1994: 49)

Aponta Foucault e Lyotard como duas figuras centrais ao pensamento pós- modernista: ambos condenaram esquemas interpretativos universais, ou uma metateoria diante da qual todas as coisas pudessem estar relacionadas ou representadas, como em Freud, ou em Marx. Para além disso, estabeleceram a relação entre poder e discurso, a importância do conhecimento como fundamental à força de produção e promoveram o reconhecimento diferenciado de jogos de linguagem (ou o conjunto distinto de códigos que são utilizados dependendo das situações em que os seus protagonistas se encontram) para apoiar a identificação do lugar onde se estabelece o poder e se deificam as instituições; enfatizaram o papel destas últimas e os mecanismos do seu funcionamento já que são as instituições que “circunscrevem o que pode ser dito e como pode ser dito” (Ibid.: 50) por oposição às conversas comuns e ao seu potencial transgressor. O pós-modernismo reivindica para si uma postura atenta às múltiplas formas como a opressão pode ser exercida na sociedade e como

se manifesta, enquanto paralelamente identifica os focos de resistência a essa opressão, inspirando-se e revitalizando a ideologia marxista.

Neste movimento, acentua o pluralismo de mundos co-existentes (do conceito de heterotropia de Foucault) por oposição à presunção modernista de falar pelos outros em nome de uma voz comum, que mais não fazia que perpetuar um sentimento imperialista quando se dirigia aos povos colonizados, às minorias étnicas, ou religiosas, à condição da mulher, entre outras situações de opressão. A este propósito, Foucault (1979) alerta para a ideia de que cada grupo deve ser portador da sua própria voz e que essa voz é autêntica e legítima em si mesma. Foucault, numa recusa da perspectiva de que a História é um

continuum de eventos estabelecido a partir de causa e efeito, desenvolve a ideia de que é

possível encontrar o fluxo histórico através de “rupturas” e “transformações” que estejam na origem de “novas fundações”. A postura de Foucault influenciou não apenas o conceito de pós-modernismo, como teve consequências na forma como os investigadores ou práticos vindos de diferentes áreas passaram a desconstruir, a interpretar, a reconstruir e a representar as experiências dos sujeitos que estavam no centro da sua pesquisa.

Associado ao pós-modernismo, surge o pós-estruturalismo com um enfoque nos modos de manipulação do poder. Shechner (2006) esclarece que, enquanto o pós- modernismo é uma prática associada às artes visuais, à arquitectura e à “performance art”, o pós-estruturalismo, a partir do conceito de “desconstrução”, é uma reacção académica ao pós-modernismo; acrescenta que, a partir do pensamento de Jane Austin (1975), a estreita ligação entre pós-modernismo e pós-estruturalismo desenvolve uma acção de subversão como sistema de pensamento anti-autoritário no campo filosófico, político e estético; o pós- estruturalismo não se centra nos factos em si, mas em como o conhecimento é construído, “performatizado” e transformado em “texto”, no sentido que Derrida (1978) lhe atribuiu. Ainda segundo Schechner (Ibid.: 2006), as suas origens estão nas áreas da Filosofia, da Linguística e da Cultura. Alguns dos seus expoentes de origem francesa são Jacques Derrida, Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix Guattari. Outras referências importantes são Guy Debord, Jean Braudillard, Pierre Bourdieu e Jacques Lacan. Estes contributos, quando transitaram para Inglaterra e Estados Unidos, rapidamente geraram derivantes que enriqueceram as teorias sobre a complexidade da performance e a sua natureza na relação com as diferentes áreas em que incide, nomeadamente através de Judith Butler (1993).

O “desconstrucionismo” pós-estruturalista foi iniciado por Derrida e Heidegger (2009) no final dos anos 60 do século XX. Derrida argumentava o quanto era gratuito tentar

dominar um texto ou controlar o seu sentido; defendia que, em vez da relação linear modernista entre significado (ou mensagem) e significante (ou meio com que se diz), toda a criação de textos se intersecta com outros textos já escritos, assumindo características de “vida própria” e que, independentemente da intenção do seu autor, essa “vida própria” vai gerar sentidos e interpretações que nem sempre transmitem, ou se limitam ao que o seu autor quis dizer: “o impulso desconstrucionista é procurar, dentro de um texto por outro, dissolver um texto em outro, ou embutir um texto noutro” (Harvey, 1994: 51).

Apesar do pós-estruturalismo assumir um discurso sobre o que constitui a linguagem e se manifestar através da escrita e dos livros, a influência do seu sistema de pensamento em outras áreas tornou-se bastante forte. Na opinião de Schechner (2006), para Derrida, “texto” é tudo o que constitui a cultura humana e a “escrita” inclui todo um conjunto de expressões culturais e práticas sociais. Entende-se por “textos” o conjunto de artefactos culturais passíveis de interpretação e não apenas os produtos literários (Harvey, 1994). A profunda relação entre os conceitos pós-estruturalistas (como “différance”, “texto”, “iteracção”, “significado transitório”) e as outras áreas fora do ciclo literário alicerça-se na noção de performatividade46.

Assim, a heterogeneidade inerente às modalidades da colagem, montagem, sobreposição, simultaneidade, ou outros processos de ruptura com a imobilidade de um texto, estimula a criação de significados e sentidos múltiplos nos seus produtores, bem como nos seus consumidores. Daqui decorre o interesse do pós-modernismo no “processo”, na

performance, no happening e na “participação” em que a recombinação dos vários

elementos propostos pelo autor fica ao critério do receptor. O pós-modernismo recusa uma representação unificada do mundo e qualquer tipo de projecto global já que, segundo esta corrente, o mundo se caracteriza por conjuntos de fragmentos em perpétua mudança e a ideia de totalidade tende a desencadear acções repressivas. Esta atitude, à partida, inviabiliza qualquer tipo de acção coerente no mundo. A esta questão, o pós-modernismo responde que:

“A acção só pode ser concebida e decidida nos limites de algum determinismo local, de alguma comunidade interpretativa e os seus sentidos tencionados e efeitos antecipados estão fadados a entrar em colapso quando retirados desses domínios isolados, mesmo quando coerentes com eles.”

(Harvey, 1994: 56)

46

O termo “performatividade” (performativity) é idêntico ao conceito de as performance, de Schechner (2006).

Harvey resume, como elementos fundamentais da prática artística da pós- modernidade:

“um maior apego às superfícies do que às raízes, mais à colagem do que ao trabalho em profundidade, mais a imagens citadas sobrepostas e não às superfícies trabalhadas, a um sentido de tempo e de espaço decaído, em lugar do artefacto cultural solidamente enraizado.”

(Harvey, 1994: 63)

Surge a questão sobre como se coloca a cultura pós-moderna dentro da cultura de mercado e da sua comodificação, numa sociedade protagonizada pelos media, a informação, a alta tecnologia e a necessidade de consumo. Segundo alguns estudiosos, na obra pós- moderna persiste uma abordagem double-coding, que utiliza uma combinação de elementos propositadamente apelativos quer a audiências especializadas quer populares, para que os “textos” artísticos conheçam um público mais alargado, sem que, para tal, sacrifiquem a sua complexidade e riqueza estética (Carlson, 2004).

Carlson argumenta contra a acusação de que os pós-modernistas assentam num sistema tradicionalmente conservador, sem compromisso com problemáticas de índole social e política.47 Aponta um grande grupo da área da performance art que se debruça sobre a

performance e as suas práticas com um olhar pós-modernista, desenvolvendo a sua análise e

acção em torno do desafio ao pensamento político dominante e às normas de um sistema opressor a nível individual e social. Lança no entanto a questão de que resta saber se o pós- modernismo já realizou o seu potencial radical, ou se, em função das difíceis mudanças de mentalidade, atitude e perspectiva que uma alteração de paradigma envolve, só agora está eventualmente a ser criado espaço para a operacionalização e expansão desse discurso.

Schechner explicita algumas subtilezas diferenciadoras do modernismo e do pós- modernismo ao afirmar que: “Na modernidade, o que era ‟profundo‟ e ‟escondido„ era visto como ‟mais real„ do que o que estava à superfície (o platonismo custa a morrer). Mas no pós- moderno, a relação entre profundidades e superfícies é fluida: a relação é dinamicamente convectiva.” (Schechner, 2006: 23).

47

Harvey (1994) discorre sobre a forma como o capitalismo investiu na criação de necessidades que não decorrem forçosamente de uma resposta às necessidades que promovem o equilíbrio humano, mas das que revelas objectivos financeiros.

O Pós-Modernismo e as Teorias da Performance

Shepherd e Wallis (2004) afirmam que o pós-modernismo na performance assume duas perspectivas: uma, como termo genérico de onde decorre a performance e “art performance” e, outra, como termo operacional relacionado com a performatividade e as suas estratégias retóricas. Diz ainda que o pós-modernismo é uma forma de fazer arte mais do que um estilo de arte.

Emergiram várias teorias da performance na passagem do modernismo para o pós- modernismo. De uma visão que se baseava em estruturas culturais e intelectuais gerais para um maior enfoque em acontecimentos e percepções individuais, acompanhada da convicção da não-existência de uma verdade universal ou de um sistema geral que desse uma resposta em simultâneo e satisfatória aos diferentes campos. Desenvolveram-se teorias sobre a influência de construções culturais nas realidades sociais com base, por exemplo, na relação entre performance e raça, performance e identidade, ou performance cultura e comunidade (Carlson, 2004).

Os pensadores da performance sob o signo do pós-modernismo fincaram a relação entre performance e performatividade, teatro e teatralidade, espectáculo e espectador. (Fischer-Lichte, 1995). Carlson define performatividade como uma “actividade que permite a execução da experimentação improvisacional, baseada em necessidades manifestadas e desejos sentidos dessa situação única.” (Carlson, 2004: 152).

Jon McKenzie (2001), a propósito das diferentes práticas e conceitos da performance, acrescenta que os conceitos e práticas da performance cultural estão historicamente relacionados com outros conceitos de performance, alguns deles bastante poderosos e manipuladores de percepções: “a performatividade opera através de uma rede complexa que opera nos níveis macro e meso de grandes instituições e de pequenas organizações, bem como no nível micro de subjectividade teorizado por Butler.” (McKenzie, 2001: 43). Este investigador sugeriu uma “teoria geral” da performance. Descreve os assuntos performativos como “fragmentados em vez de unidos, descentrados em vez de centrados, tão virtuais quanto actuais” e que os objectos performativos são “instáveis em vez de fixos, simulados em vez de reais”. Eles “não ocupam um lugar único e ‟de sua exclusiva posse„ no nosso conhecimento.” (Ibid.: 18). Desenvolveu a sua pesquisa através de outros territórios da

performance, como seja a “Performance Organizacional” e a “Tecno-Performance”. Para

averiguar sobre a forma como diferentes paradigmas da performance pressupunham traços diferentes ou, eventualmente, a sobreposição de princípios idênticos, analisou a validação da

performance, por parte das corporações dominantes, com base em conceitos como “eficácia”

e “expediente” que, associados a uma racionalidade tecnológica, contagiaram as restantes esferas da vida social (Ibid., 2001).

Jon McKenzie (2001) apoiou-se no pensamento de Lyotard, Foucault, Marcuse, Deleuze e Guattari. Cruza conceitos como o de “princípio performativo” de Marcuse;48 o

“performance stratum”, numa inspiração em Deleuze e Guattari; o conceito de “norma liminal” – como espaço de transgressão da norma e de activismo social, explorando o potencial do espaço liminal para o desafio de princípios estruturantes à ideologia capitalista como o princípio da “eficácia”; e o conceito de transição entre “disciplina e performance”, com base no pensamento de Foucault (Shepherd e Wallis, 2004). Estabelece o “princípio performativo” como central a essa teoria. Este princípio, inspirado em Foucault, realça a transição de uma sociedade cuja matriz assentava na disciplina que presidia às suas diferentes instituições e corporações, para uma outra contemporânea, cuja matriz assenta no poder da performatividade imbuída de elementos transgressores, da disseminação da heterogeneidade, do esbatimento das fronteiras entre instituições sociais. Defende que este novo princípio está na base de uma mudança fundamental e que a transição da “disciplina” para a “performance” é o que vai encorpar uma nova abordagem sobre o conhecimento, a actuação e a História. Alguns indicadores desta transição são a valorização nos locais de trabalho da polivalência para diferentes tarefas, o crescimento do “défice de atenção” dos alunos na escola, ou ainda o cultural surfing que preside ao dia-a-dia. Para reforçar a forma como o elemento performativo contagia as diferentes áreas culturais, sociais e tende a consolidar as corporações e o seu domínio, McKenzie (2001) alude aos programas de avaliação performativa, seja na área artística seja noutras áreas, com base em formas de quantificação com inspiração em imperativos económicos e tecnológicos, cuja preocupação é com a eficiência e o expediente, de onde os valores sociais, morais, éticos e estéticos estão quase, senão totalmente, ausentes. Esta postura gera uma série de “efeitos perversos” que contrariam os objectivos do projecto, ou acabam por o obrigar a acomodar-se aos números em detrimento dos conteúdos, ou de outras variáveis que melhor caracterizariam o seu desempenho e serviriam para a divulgação de boas práticas. McKenzie (Ibid.) conclui que a

performance pode conter em si tanto “valências normativas como desviantes”, pode agir

48

“Princípio Performativo” é uma expressão utilizada por Marcuse numa analogia que este fez com o “Princípio da Realidade” que sucede ao “Princípio do Prazer”, identificados por Freud; associou-a a uma versão histórica dos trabalhadores sob domínio capitalista e à obrigação de eficiência e expediente a que estão sujeitos: a “performance” torna-se assim o modo pelo qual as pessoas são coagidas a produzir o máximo, com o mínimo de recursos, no mínimo de tempo (Shepherd e Wallis 2004).

como força de resistência social ou como território de domínio, conforme se trate de

performance cultural, tecnológica ou organizacional.

Diana Taylor (2002) afirma que foi Butler quem aprofundou a relação entre “Performativo” e “Performatividade”. Butler (2008), elaborou um conjunto de textos também com base em alguns aspectos dos Estudos da Performance que coloca no centro o “performativo” como fenómeno informador da construção cultural, da estabilidade e da identidade com consequências na percepção e auto-percepção do género e da sexualidade.

Lyotard (1979), ao estabelecer a relação entre poder e optimização da performance nos mundos do negócio, tecnológico e governativo, inspirou Hutcheon (1988) e a sua análise da arte pós-moderna como continuação dos ideais transgressores que alimentaram a avant

garde contra o liberalismo burguês. Carlson (2004) refere como os autores mais

representativos da actualidade no campo da teoria da performance, Erika Fischer-Licht, Judith Butler, Peggy Phelan, Judith Hamera, Julie Reiss, Baz Kershaw, Dwight Conquergood, Jon McKenzie, Rebecca Schneider, Philipp Zarrilli ou Diana Taylor, entre muitos outros.

3.2.4 Divergências sobre a Relevância do Pós-Modernismo na Performance

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