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Escala entre Não-actuação e Actuação

III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO: RAÍZES DO TEATRO SOCIAL

3.1. Pedagogos do Teatro Moderno

3.1.3. Brecht e a Transformação da Sociedade

Depois do Teatro Total de Wagner e da sua grandiosidade espectacular, era difícil a qualquer outro género teatral desafiar tal intensidade. Brecht procurou que o teatro não se restringisse ao aparato, nem se limitasse à observação do mundo mas, acima de tudo, que interviesse na transformação da sociedade. Foi influenciado pelos ideais da “era científica”, que defendiam que cabia ao Homem dominar novas possibilidades de organização social, de industrialização e de mercado. Tanto Brecht como Erwin Piscator e o seu “Teatro Político” (1929) tinham a convicção de que os ideais marxistas e um trabalho comprometido na luta de classes eram uma plataforma de conceitos fundamentais ao teatro, como oposição ao comodismo da classe da média burguesia.Opuseram-se ao teatro aristotélico de identificação entre o espectador e o herói (Roose-Evans, 1989).

Leach (2004) aponta como determinante no percurso de Brecht, a preocupação de o teatro intervir directamente no quotidiano da humanidade e nos assuntos políticos que o geriam, revelar o quanto a alienação burguesa era fabricada pela sociedade e atribuir ao teatro não apenas o papel de interpretação do mundo, mas o dever de agir sobre ele, ajudando as pessoas a mudá-lo.

Apesar dos seus objectivos transformadores e políticos, Brecht (1964) não esquecia a importância do papel de diversão do teatro. Mas o conceito de diversão de Bertolt Brecht diferia do de Richard Wagner, ou seja, Brecht não procurava que o teatro fosse uma área de ilusão mas sim um campo de experiências. Tinha diante de si a árdua tarefa de articular a seriedade do acto político e da instrução com o espírito de interesse, curiosidade e entretenimento que queria fazer prevalecer no espectáculo. Do ponto de vista de Brecht, aprender, instruir-se, questionar e utilizar um ponto de vista dialéctico era um vasto campo pejado de elementos lúdicos.

A fim de encontrar uma alternativa de teatro capaz de ser, simultaneamente, instrutivo e de entretenimento, assim como transpor o seu sentido de ilusão para o de

experiência, Brecht desenvolveu, ao longo da vida, diferentes conceitos que contribuíram para a evolução do papel do público, do actor e da encenação, com consequências directas na emergência de uma nova dramaturgia. Sistematizou o Teatro Épico e o Teatro Didáctico como pontes de diálogo transformador e instrutivo do público, que implicaram as noções de “distanciação”30, de “fábula” e de “gestus” e da figura do “actor-mediador”. Estas noções

imprimiam uma nova postura do actor em relação à forma como interpretava e à forma como construía a sua relação com a audiência. Reviu o papel da audiência no espectáculo, induzindo-a a confrontar-se reflexivamente com o fenómeno teatral e não apenas a elaborar uma apreciação vaga através dos sentidos.

Conceitos Relacionados com a Função Social do Teatro

A função social do teatro alicerçava-se no espectador: o espectador ideal seria aquele capaz de ter uma visão complexa do espectáculo, simultaneamente abrangente e detalhada, perseguindo e apreciando os vários caminhos alternativos através dos quais a fábula se desenrola, numa interpretação não linear das ocorrências teatrais, capaz de captar os paradoxos e as contradições contidos nas situações apresentadas, com consequências imediatas no seu activismo político. Mais do que o diálogo entre a peça e o espectador, Brecht procura um processo dialéctico nos dois sentidos: potenciando reciprocamente a transformação do espectador pela peça e da peça pela leitura que dela faz o espectador. Alguns dos seus dispositivos cénicos, como sejam as projecções, não se destinavam a estimular a empatia do espectador com o espectáculo mas, ao contrário, tinham uma função de ruptura e de quebra de automatismos que conduzissem o espectador a alienar-se na história, ou a ser arrastado emocionalmente e a esquecer uma atitude activa para com a fábula que se desenrolava diante de si.

Brecht desenvolveu com base em Piscator o conceito de Teatro Épico, que se tornou essencial para o teatro de hoje. Piscator, criador do termo, pretendia que o teatro fosse um local científico, racional e objectivo, que desenvolvesse a consciencitização do público para a transformação da sociedade, mais do que uma avaliação, ou do que uma experiência estética do mundo. No entanto, Piscator afirma que enquanto para ele Teatro Épico era uma forma de produção baseada no documentário, para Brecht era uma forma de argumento, inspirado num enredo (Roose-Evans, 1989).

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A noção de Teatro Épico influência as abordagens de teatro em áreas diferentes. Assim, Solmer define Teatro Épico em oposição ao:

“teatro aristotélico da mesma forma que epopeia e drama se opõem como narração e acção. O Teatro Épico é, pois, um teatro narrativo, que recusa a ilusão e qualquer comunhão, utilizando para isso efeitos de distanciação, de modo a conservar uma atitude crítica por parte do espectador e uma eficácia pedagógica que o drama, ao apelar à identificação e à comoção, não possui. No Teatro Épico o actor não vive a acção mas demonstra-a.”

(Solmer, 1999: 48).

Esta perspectiva vem reforçar as qualidades educativas, pedagógicas e de inovação dramatúrgica do teatro. A postura de ruptura pode ser por vezes confundida com o não envolvimento do espectador, o que não era o objectivo de Brecht (1964): ele procurava o envolvimento do espectador com a cena, mas como espectador activo, capaz de se implicar humanamente com a situação que se desenrola perante si e simultaneamente de manter o olhar crítico e elaborar o seu próprio julgamento31. O enfoque incidia no estudo das relações entre as pessoas em situações particulares, onde o ponto de vista da transformação de laços de poder e o contexto histórico e social orientavam o enredo.

No sentido de abarcar estas vertentes numa dramaturgia que lhe é própria, Brecht desenvolveu o conceito de ”fábula”, por oposição ao de “narrativa”. Solmer (1999) escreve que a importância da reconstituição da fábula reside na possibilidade de esta abarcar a intriga em todas as suas vertentes; a partir daqui, o acesso ao nível social e à mensagem é construído em simultâneo. Pavis (1999) esclarece que a construção da fábula implica a perspectiva do enredo e a perspectiva histórica (na visão marxista), que procede da interpretação dos acontecimentos para a selecção do que é considerado mais significativo. Defende ainda que a sua elaboração não incide apenas no texto dramático mas, sobretudo, no processo de encenação e de jogo teatral, e que se encontra em constante alteração: “A encenação deixa de aparecer como actualização definitiva do sentido, mas escolha dramatúrgica, lúdica e portanto hermenêutica.” (Ibid.: 133).

Outra noção estruturante no teatro de Brecht é a de “gestus”, imbuído de significados complexos relacionados com os nós da acção, com a fisicalidade do actor e com as influências sociais do personagem que condicionariam as suas atitudes e posturas corporais.

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Se bem que possa ser discutível se esse julgamento já estaria ou não, logo à partida, direccionado por pensamentos que interessava a Brecht difundir.

O “gestus” pretende ser a síntese, a contenção, o centro de onde procede o poder comunicativo, expressivo e relacional do personagem. Tem uma origem dialéctica quando sintetiza simultaneamente a acção física e a carga simbólica que transporta. Koudela explicita que:

“O que diferencia o ritual politico brechtiano é o princípio do “gestus”, o qual, ao incorporar o sensorial e o racional, pressupõe o propósito estético e a experiência estética. Em lugar da comunhão colectiva para provocar a catarse, Brecht pretende a descomunhão colectiva para obter mudança de comportamento.”

(Koudela, 1992: 30)

De forma a acentuar a consciência da situação social humana, Brecht criou o conceito de “distanciação” que, segundo ele, não se limita a um efeito estético, mas pretende realçar o acto político. Quando aplicada a nível do jogo do actor, consiste numa técnica de desconstrução e de estranhamento através da qual o actor se desloca do seu papel para revelar à audiência o artifício e os detalhes que se relacionam com a realidade política dessa mesma audiência e para impedir que os espectadores se envolvam demasiado com a ficção ao ponto de se desconcentrarem do conteúdo teatral e do acto político.32 Acentua junto do público a consciência de que está perante uma ficção. O conceito e a prática da “distanciação” brechtiana são também denominados por “V effect”, em inglês, e “efeito V”, em português, por Koudela33.

Pavis (1997) assinala que a distanciação acontece em vários níveis constituintes do espectáculo, nomeadamente na fábula, no décor, na gestualidade, na dicção, no jogo do actor e no apelo directo ao público. Do texto de Koudela seleccionámos duas frases de Brecht quando questionado sobre o que seria o teatro do futuro: “sagrado, cerimonial, ritual (…) espectadores e atores não devem aproximar-se, mas sim estranhar-se de si mesmos, de contrário não ocorre o espanto, necessário ao re-conhecimento (Brecht).” (1992: 30). E, mais adiante: “Os assim denominados efeitos V (Verfremdungsefekte) referem-se a um conjunto de meios artísticos (procedimentos) que têm por finalidade subtrair de um acontecimento aquilo que é evidente, conhecido, óbvio, e provocar espanto e curiosidade” (Brecht).” (1992: 59).

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O actor fazia o desdobramento antes de a cena atingir o seu clímax emotivo, ou interrompia repentinamente uma acção e iniciava uma outra, encorajando uma nova percepção e uma desalienação ideológica.

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Persiste alguma indefinição quanto à tradução correcta do termo para português, sendo mais comummente designado por “efeito de distanciação”.

O Actor, a Encenação e a Dramaturgia

Max Reinhardt influenciou fortemente Brecht. Para Reinhardt o mundo era um palco, não só em termos cénicos, já que produzia os espectáculos nas ruas, praças, dentro das casas, mas também como fonte de inspiração para as suas produções. Tinha a convicção de que diferentes peças exigiam diferentes tipos de encenação. Esta ideia conduziu a uma livre inspiração nas outras tradições teatrais que, por um lado, libertou o teatro da subordinação à literatura e, por outro, salientou que a prioridade não era perseguir um estilo ou um método, mas procurar o que podia contribuir para tornar a peça viva. Brecht herdou de Reinhardt a vontade de emancipação perante um método específico eventualmente constrangedor da criatividade e da vida em cena, a fim de se aproximar de expectativas geradas na assistência. Herdou também o gosto pelo detalhe, que aplicou no rigor da marcação de cena, nos movimentos individuais e nas deslocações de grupo (Drain, 1995).

Através da sistematização destes conceitos e da argumentação consistente da sua ideologia, Brecht colaborou para o aparecimento de uma nova dramaturgia, onde a ligação entre o texto, a cena e o público ganharam maior relevância. Solmer refere que:

“Com Brecht, a noção de dramaturgia passa a ter contornos, por um lado, muito precisos e, por outro, bastante mais complexos e alargados. Ela será, por um lado, a estrutura ideológica e formal do texto (e não apenas os elementos constitutivos da construção dramática, como na dramaturgia clássica), mas também a articulação, no texto e no espectáculo, de uma forma teatral com um conteúdo ideológico e ainda os processos utilizados na encenação do espectáculo de forma a produzir no espectador os efeitos pretendidos por essa articulação entre forma e conteúdo.”

(Solmer, 1999: 298)

O texto e a encenação, em si, não são transmissão de conhecimento, mas um artifício mediador que contém a fonte para que o receptor tenha a possibilidade de produzir conhecimento.

Brecht inspirou-se também na estilização, simplicidade e rigor do teatro Nô, japonês, e no circo chinês. Não se dedicou ao desenvolvimento de metodologias específicas de treino do actor. Considerava que qualquer actor estaria à altura de cumprir os objectivos que preconizava desde que estivesse interessado nos princípios do Teatro Épico, com suficiente espírito crítico e capacidades artísticas capazes de desenvolver criativamente a partir do

esboço proposto pelo encenador. Em termos cénicos, Brecht considerava que o actor poderia cumprir o papel mediante o domínio de algumas técnicas elementares, como a improvisação, a execução detalhada de uma acção, ou a integração de posturas quotidianas num formato particular à presença em palco. Realçou a importância da observação na construção do papel, através da qual o actor seria um “transportador” fiel das acções daquele que observara e do seu contexto. Exigia que fossem realçados os factos do sucedido até ao detalhe34. O actor devia encontrar as forças dinâmicas da sua criação, para o que invocava os aspectos em contradição no seu papel e transpunha essas contradições para cena com base numa atitude crítica. Para isso, devia trabalhar na “super-tarefa” do personagem. Leach (1993) refere que esse processo pressupunha a procura das contradições e escolhas realizadas pelo personagem. A compreensão do personagem desenvolvia-se através das acções, mais do que através das emoções, em que o actor “objectivava” o seu papel em função de uma atitude crítica. Este percurso de descoberta não pretendia ser linear, nem responder às contradições enunciadas, antes pelo contrário, essa fragmentação era uma fonte de exploração criativa, concreta, divertida tanto no processo quanto no resultado, e que uma vez apresentada à audiência contivesse humor e elegância.

Brecht tornou-se uma figura de referência tanto pelos seus contributos éticos e estéticos para a actividade performativa da actualidade como pelo conceito de teatro associado à transformação social. Vários estudiosos do teatro contemporâneo, sobretudo após os anos 60 do século XX, alertaram para a actualidade de Brecht. Leach (1993) realça o facto de Brecht ser mais complexo e diversificado do que as suas peças encenadas pelos grandes teatros nacionais deixam entrever, identifica várias valências que prevalecem numa grande parte do recente teatro que marca a actualidade: no modo de produção que era essencialmente colaborativo; na reapropriação dos textos e materiais pré-existentes, valorizando uma reinterpretação à luz da contemporaneidade e dos seus aspectos sociais e históricos; na inovação do conceito de dramaturgia e numa nova perspectiva quanto à ruptura e integração de elementos significantes; no papel do actor como identidade criativa e no papel do público como elemento activo e reflexivo; na comunicação a estabelecer entre o espectáculo e a audiência. Por todas estas razões, pelo espírito de homem lutador, defensor de fortes convicções políticas e sociais, que aplicou à sua prática artística, Bertolt Brecht deixou-nos uma preciosa herança através da sistematização rigorosa do feito teatral e tornou-

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A direcção de actores, em Brecht, assentava numa construção progressiva com base em detalhes, aprimorando cada um deles, até à finalização total do quadro que o dramaturgo alemão pretendia dar a conhecer.

se um marco incontornável do teatro contemporâneo a nível estético, social e conceptual (Drain, 1995).

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