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2ª Parte – Resultados

6.2 Princípios e Conceitos Teórico-Práticos Identificadores de Teatro Social

6.2.4 Transformação e Empowerment

O painel de entrevistados encara a transformação como surgindo gradativamente na sequência da aglutinação de pequenos actos localizados. É suposto que esses actos acompanhem um crescendo de interesse para com o que se passa na actualidade. Consequentemente, consideram que o TeS não se atribui a si mesmo a transformação da sociedade, mas colabora para que esta aconteça: não tem a pretensão de conseguir profundas alterações sociais ou um impacto em termos globais. No entanto, a acção tem necessariamente um efeito transformador sobre algo confirmando, contestando ou afectando. Estão convictos de que TeS contribui para a melhoria dos problemas das pessoas e não para a sua resolução (ENTR). Referem ainda que, se por um lado é consensual que os “territórios” performativos têm latente a possibilidade de transformação, por outro, como já foi dito, surge a impossibilidade de aferir do seu impacto, seja pela impossibilidade de encontrar uma medida que dite a partir de onde se pode considerar “transformador”, seja pela impossibilidade de prever quando essa transformação terá lugar, seja pela ambição desmesurada que seria colocada sob a responsabilidade do operador na produção desse efeito. Com o intuito de não confundir objectivos irrealistas ou demasiado ambiciosos com

aqueles que estão ao alcance da intervenção, alguns especialistas optam pela utilização dos termos “transportação” ou “mudança”, em vez de “transformação” (ENTR).

A ideia de “transformação” ou de “transportação” está fundamentada por alguns autores. Taylor denomina “princípio transformador” aquele a partir do qual procede a acção de TeS. De seguida, elenca diversas intenções na intervenção, como seja, aumentar o nível de consciência, criar alternativas de vida possíveis, curar e desbloquear barreiras psicológicas, intervir nos discursos contemporâneos, dar voz aos que estão marginalizados na sociedade 180. “O teatro torna-se um meio para a acção, para a reflexão mas, mais importante, para a transformação – um teatro no qual novos modos de ser podem ser encontrados e novas possibilidades para a humanidade podem ser imaginadas.” (Taylor, 2003: xxx).

Schechner (1989), considera que durante os processos liminóides não se opera uma transformação mas sim uma transportação, tal como é entendida no paradigma do universo subjunctivo e do sujeito-performer: não se procura que este se transforme noutra pessoa mas que se crie o espaço (liminal) para que ele actue entre identidades. (eu, não eu e não-não eu) e desenvolva os moldes em que a transportação tem lugar.

Também Soyini Madison (2005) nos esclarece sobre “transportação” na perspectiva da “Critical Ethnography”. Esta perspectiva tem ligação com a noção de “performance de possíveis” apontada por Conquergood e que Madison sintetiza como um movimento que culmina num evento que foi alvo de uma acção criativa, numa imersão entre texto e mundo, abrindo mais caminhos na vivência de relações e espaços.

“A performance torna-se o veículo pelo qual viajamos para mundos de temas e entramos em domínios de intersubjectividade que problematiza a forma como categorizamos quem somos nós e quem são eles, e como nos vemos a nós próprios com outros e diferentes olhos.”

(Madison, 2005: 176)

Nicholson (2005), na mesma direcção, não põe em causa o contributo do TeS para a mudança, mas levanta dúvidas quanto ao pressuposto de que existe sempre uma transformação, para melhor, de crenças e atitudes, sobretudo quando tais crenças assentam em resultados imediatos, testemunhados pelos participantes. Então é legítimo que se questione se a transformação sentida corresponde à verdade, ou se é apenas fruto de uma

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efusividade genuína e passageira, ou ainda se os participantes são cúmplices a fim de se cumprirem os alvos pré-determinados, no que Nicholson define como “seguir o guião do workshop.” (Nicholson, 2005: 82). Afirma que o próprio conceito de mudança é subjectivo.

A propósito de poder ser considerado transformação se apenas abalar o indivíduo, ou só quando este se altera profundamente, Thompson (2009) refere que as pequenas ondulações, provocadas pelos momentos de prazer que afectam tanto os participantes como aqueles que assistem ao evento performativo, são uma parte integrante e significativa do processo que potencia a transformação. Estes momentos de prazer constituem-se também como um elemento importante à emergência do potencial transformador contido nesses eventos. Tem a convicção de que o processo está longe de ser válido apenas pela vertente reflexiva, de debate de ideias ou da abordagem directa de problemáticas: apesar de transitórios, esses momentos são também marcantes e a sua eventual repetição pode ser transformadora. A procura de respostas ou impulso para a tomada de iniciativa pode surgir muito depois do momento de inspiração e intranquilidade provocado pelo evento.

Acerca da perspectiva de mudança, alguns dos especialistas entrevistados consideram que é irrealista entender o TeS como a passagem para a felicidade ou a reconciliação do conflito (ENTR). Referem que, por vezes, a mudança consiste numa intranquilidade, num abalar de certezas, ou num impulso para a acção. Ou seja, a eficácia em direcção à mudança reside na experiência da acção, da sua turbulência e nos insights que surgem do processo em si mesmo e que são passíveis de transformar os quadros conceptuais pela vivência da intranquilidade, do confronto e da luta.

Sustentabilidade da Acção e Mudança

Bernardi (2004) alerta para o facto de o projecto de TeS não terminar com a apresentação de eventos; e apelida de “uma dramaturgia mais ampla” aquela acção que continua junto do quotidiano da comunidade e das suas instituições. A permanência das actividades tem como objectivo evitar um efeito contraproducente que pode ocorrer ao criar novas expectativas, relações e percepções de vida positivas que, afinal, se restringiam ao laboratório, se ao regressar à rotina diária não houver indícios de alterações efectivas na rede social ou de novas possibilidades de vida. O efeito multiplicador ou contágio da forma relacional que foi mais efectiva, nas várias ilhas grupais que constituem esse contexto, é uma garantia da continuação do projecto, uma estratégia para a amplificação de ciclos e a

consolidação da sanidade afectiva e social dos seus elementos – no que se constitui como sendo o capital social desse local. (Putnam,2000).

Nos resultados da análise ao ”Caleidoscópio”, os participantes apontam uma mudança de atitude em relação a pessoas com vivências ou perspectivas diferentes das suas, no grupo ou na turma, nomeadamente pela inclusão de pessoas portadoras de deficiência. Colaborou nesta inclusão a atmosfera de encontro vivida no universo dramático, a emergência do sentido de coro e o reconhecimento e valorização de potenciais performativos. Alguns referem que essas mudanças foram ressentidas apenas durante o laboratório (CAL).

Também foi possível aferir que as novas perspectivas geradas na sequência do “Caleidoscópio” foram muito variadas de indivíduo para indivíduo: alguns apontaram a questão da cidadania, a sua apropriação e o desejo de a desenvolverem em acção (apesar de não identificarem essa vontade com estes termos) (CAL); outros, a constatação de preconceitos antigos; outros, sobre o potencial da performance, focaram a descoberta de diversidade de interpretações, ou a importância da participação (CAL).

Junto do painel de entrevistados, a antecipação de sustentabilidade como condição de desenvolvimento da acção não reuniu consenso. Alguns defendem que só se deve iniciar a acção quando se toma parte na continuação do processo de transformação de forma a não deixar pessoas vulneráveis sem alternativas. Que se deve partir para a acção com o princípio de que esta só está completa quando forem atingidas mudanças juntos dos quatro níveis ou ciclos sociais: indivíduo, grupo, comunidade/ instituição e sociedade. Não se deve dar início à intervenção caso seja impossível provocar a mudança, a mobilização da instituição e a reconstrução social, já que não subsiste a construção de pontes da margem para o centro e do centro para a margem. Na base desta atitude radical está o receio de oportunismo de algumas acções que se intitulam como sendo de TeS e cujo intuito é a sua instrumentalização a favor de agendas políticas e ideologias estranhas aos objectivos da intervenção, com a consequente “domesticação” e preservação do status quo. Um dos entrevistados aponta que a perversão do “porquê” assim imposta à intervenção resulta em algo que, no melhor dos casos, não afecta nada nem ninguém ou, no pior, apoia o poder que está na origem da deturpação (ENTR).

Outro ponto de vista de alguns teóricopráticos indagados, é aquele em que optam intencionalmente por assumir a sua incapacidade de não resolução ou não resposta em relação ao facto da intervenção do TeS acordar certas esperanças de mudança que depois, na

continuação do dia-a-dia, se revelam infundadas: adoptam uma atitude de modéstia sobre a capacidade de avaliação do que se provocou e não deixam por isso de empreender as acções que julgam pertinentes apesar das incertezas dos seus benefícios. Acrescentam que abalar as fundações sobre as quais a pessoa se constituiu e que abrir fragilidades podem também ser sinónimos de receptividade à transformação. Então, algum mal-estar que subsista no indivíduo pode ser precisamente o que vai permitir despoletar atitudes que sejam empreendedoras de acções transformadoras. Encaram esta questão como um dos paradoxos inerentes a TeS com o qual terão de saber lidar (ENTR).

Acrescentam que o facto de se iniciar a acção é já suficiente como forma de despoletar e tomar parte no processo de descoberta de uma eventual transformação, bem como para recuperar um novo olhar sobre os lugares que estão isolados da sociedade e dar uma nova oportunidade às pessoas que aí vivem de se relacionarem com o ambiente. Apontaram que é complicado aferir do nível de impacto no início da intervenção e que é igualmente difícil conhecer com rigor o sucesso das intervenções quando estas se baseiam na medição da modificação ocorrida: a transformação pode ocorrer em diferentes momentos, tempos e situações que ultrapassam a intervenção. Acrescentam que, quanto maior esta incerteza de resultados transformadores, maior a necessidade de sustentabilidade do projecto (ENTR).

Na intervenção “Caleidoscópio”, optou-se por implementá-la apesar de não haver certeza sobre a sua sustentabilidade. Constatou-se, com base nos resultados, que essa foi uma decisão consequente, independentemente de só terem sido atingidos os dois primeiros níveis (indivíduo e grupo) e parcialmente o terceiro (instituição escolar e seus representantes) e de não ter sido possível garantir a sua continuação. De facto, as marcas que produziu foram positivas, com um potencial transformador, de criação de necessidade, coerentes com os objectivos e valores de TeS (CAL).

Somos da opinião, com base nos resultados obtidos, de que, não sendo possível antecipar a certeza da continuidade, nem sendo possível aferir os efeitos que se produzirão a médio e longo prazo, a intervenção deve ter lugar uma vez que se constate que a instituição e os seus representantes estão minimamente abertos à mudança (CAL). Na continuação do que foi dito pelos especialistas entrevistados, os participantes do Caleidoscópio comentaram que, só após o final da performance e de insights provocados pela experiência embodied, descobriram o potencial mais amplo da intervenção (CAL). Sendo assim, somos da opinião de que a decisão de intervir ou não depende em grande parte da fragilidade dos indivíduos e

do contexto onde se intervém, das expectativas do grupo sobre a intervenção e dos indícios de receptividade da instituição acolhedora.

6.2.5 Troca e Encontro

Schininà, Bernardi, Pontremolli, entre outros teórico-práticos de TeS, identificam como dinâmica estruturante de TeS o mecanismo de troca e encontro, subjacente ao seu Modelo Comunicativo.

A distinção de etapas durante a troca e encontro e a adequação de práticas em conformidade com a etapa tornam-se uma mais-valia que colabora para assumir a criação de espaços para a ocorrência da mudança, sendo claro que dificilmente esta surja num curto espaço de tempo.

O mecanismo de troca e encontro, na base de TeS, é o motor essencial à emergência da transformação e reafirma não parar às portas de performances pontuais, mas perseguir os germens de vínculos que aí se estabeleceram até estes se dilatarem ao patamar seguinte – reassumindo o papel do ritual em tempos idos – onde esse encontro é perdurável ao ponto de agir, de forma mais consistente, na reformulação de papéis sociais e da interpenetração entre margem e centro. Na Revisão de Literatura, já tivemos ocasião de expor as perspectivas de estudiosos como Kershaw, Watson ou Barba sobre em que moldes se constrói o mecanismo de tentre culturas.

Como já foi abordado na Revisão de Literatura, no centro da troca está a reciprocidade que é gerada entre os vários grupos (Kershaw, Barba, Watson). Neste âmbito, os elementos e materiais culturais que constituem as performances tornam-se catalizadores de contacto sem a preocupação de apropriação dos formatos culturais que convocam, nem de transmissão ou divulgação desses materiais. Ao contrário, fincam o que cada uma detém de autoria e ao performarem as diferenças procuram que o encontro de igualdades culturais aconteça através do equilíbrio entre a diversidade de culturas envolvidas na interacção.

O mecanismo de troca e encontro não se centra tanto no diálogo cultural e na noção de compromisso entre culturas, mas no encontro cultural e na utilização dos seus materiais performativos para entabular o contacto. Admitir que a troca e o encontro, contidos na

performance, representam em si mesmos apenas a semente de algo mais profundo em termos

demasiadamente ambiciosos e demasiadamente próximos da linha defendida pelo discurso das políticas públicas (Thompson, 2008) que desvirtuam a prática de TeS.

Todos os membros do painel focam a troca e o encontro como sendo estruturantes a TeS e profundamente relacionados com os outros conceitos que o fundamentam, como o conceito de contexto e identidade cultural, diferença, transformação e empowerment e criação de pontes (ENTR).

Na intervenção Caleidoscópio, e em função dos resultados obtidos, tornou-se evidente que, à medida que se avançava no laboratório, as acções que se produziam entre os vários membros (entre os elementos do coro e com a operadora), com vista à concretização da performance, eram em grande parte ditadas por um sentimento de reciprocidade, mais do que de dever. É de notar que a reciprocidade e as afinidades são muito valorizadas nos hábitos locais, na validação de vínculos, interacções e como elemento de metacomunicação (CAL).

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