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Escala entre Não-actuação e Actuação

III. ENQUADRAMENTO TEÓRICO: RAÍZES DO TEATRO SOCIAL

3.6 Contributos de Outras Áreas das Ciências Sociais

3.6.1 Antropologia e Sociologia

3.6.1.5 Antropologia Cultural no Teatro e Performance

A perspectiva de Turner teve um enorme efeito na prossecução da própria actividade artística, não só em termos culturais, mas também em termos de conceptualização teórica, estética e prática. Um das suas maiores referências é Schechner (1989). Schechner, em conjunto com Turner, desenvolveu pesquisas práticas que demonstraram que a cooperação entre o antropológico e o teatral eram uma fonte de aprendizagens e abordagens inovadoras em cada uma das áreas. No centro desta colaboração residia a investigação de conceitos como performance e “drama”. A especificação do termo “social drama” desencadeou uma abordagem que ultrapassava uma distinção simplificada entre drama estético e performance de eficácia social, cuja tónica se colocava num conjunto de interacções quotidianas (Schechner, 1988).

As descobertas de Turner influenciaram a área do teatro e da performance e o aparecimento de conceitos que geraram inovações na abordagem teatral e artística. A perspectiva de espaço liminal, como local onde se desenvolvem actividades imbuídas de transgressão e de potenciação de alternativas culturais, tornou-se uma fonte inspiradora tanto para teóricos como para práticos da performance. Permitiu-lhes fundamentar o papel social da performance, em oposição aberta à corrente teatral convencional.

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Turner defende que o lazer é um conceito que nasce com a sociedade industrial moderna e que vem delimitar o período do trabalho e o do não-trabalho.

A investigação focava um tema de interesse comum a vários colaboradores da avant

garde dos anos 70, acerca das relações entre o universo ficcional e a vida quotidiana. Com

base na investigação realizada, Schechner debruçou-se sobre a correspondência e sobre a diferenciação entre “drama social” e “drama estético”, ou drama como arte, identificando alguns pontos distintos e pontos comuns entre ambos, que originou uma figura em forma de oito, onde está plasmada a sua interrelação. Esse esquema é revelador da convergência entre “drama estético” e “drama social”. Turner concorda com esta convergência mas afirma que: “a forma processual dos dramas sociais está implícita nos dramas estéticos… enquanto a retórica dos dramas sociais – e, por este motivo, a forma do argumento – é extraída das

performances culturais.”87 (Turner, 1982: 90).

Foi igualmente importante estabelecer a relação entre “drama estético” e as três fases apontadas por Gennep e depois Turner (separação, transição e incorporação), já que Schechner considerava que estas etapas orientavam igualmente os processos presentes em todo o universo do teatro e na pluralidade das suas formas, de onde emergiu o conceito de

Restored Behaviour.

A noção de “drama estético”, com base no modelo da “drama social” de Turner, impulsionou o entendimento da teoria e da poética da performance dos anos 70, que conheceu uma importante sistematização no livro, “From Theatre to Anthropology”, de Schechner (1989). A perspectiva de Turner permitiu colocar o “drama estético” ao lado de um conjunto de outras performances humanas. De facto, recuperava-o do “teatro” propriamente dito e fornecia novos mecanismos de interpretação para a definição dos seus alicerces e fundamentos.

Shechner realçou a diferença entre rituais e teatro já que os primeiros são como o teatro mas não são teatro. No teatro, é pedido à pessoa que “personifique alguém”. Nos rituais é pedido que seja ela própria naquilo para que foi designada. No teatro, são valorizadas as qualidades de virtuosidade, de domínio de códigos teatrais e de presença em palco do artista. Nos rituais, o que é mais importante é o significado e a consequência da acção do ritual, através da presença daquele que a protagonizou:

“As formas de arte codificadas em grande parte são sobre quão bem o artista está habilitado a representar (to perform) – e, em menor parte, sobre o que a performance significa. (…) De facto, por vezes, a falta de virtuosidade teatral acrescenta-se ao

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A título de exemplo, o “drama estético” pode ser encarado como fazendo parte da fase de “reparação” do “drama social”.

poder da performance ritual ao salientar a importância da acção e do papel socialmente sagrado do performer do ritual.”

(Schechner, 2006: 191)

Outros exemplos do cruzamento entre Antropologia e Teatro, mas numa outra direcção, encontram-se nos trabalhos realizados por Barba e Hastrup, ou a prática desenvolvida por Brook e Grotowsky.

Notas Finais

Como ficou patente, o teatro proporcionou, tanto à Antropologia como à Sociologia, instrumentos de análise que deram lugar a novas conceptualizações que se tornaram essenciais ao estudo de fenómenos sociais. Apesar de algumas divergências já apontadas anteriormente, os conceitos, processos e estruturas, que decorrem da Performance Social e da Antropologia Cultural, foram um enorme contributo para a inovação de perspectivas sobre o papel do teatro e performance no indivíduo e na comunidade.

Todo este percurso influencia os modelos de teatro a desenvolver na comunidade, na medida em que destacam o quanto a criação performativa brota do contexto social e cultural em que é realizada, seja pelo conjunto de signos, seja pela leitura a que estes são subordinados. Alicerça a ideia de que essas actividades performativas são enriquecedoras, não ao pretender “revitalizar tradições” – tendência presente na Animação Sociocultural, onde perdura a ilustração das actividades culturais –, mas ao abrir espaço para recriar a identidade do indivíduo e do colectivo.

3.6.2 Dramaterapia

A arte teatral encerra a função terapêutica, estética e social. Ao celebrar a imaginação, o universo ficcional e a transcendência da percepção do quotidiano, a arte procura a ruptura com as fronteiras, independentemente da natureza destas. Nesta ruptura não está ausente a intenção de transgressão, também com efeitos de libertação pessoal. É no equacionar dessas fronteiras, na escolha entre a sua delimitação ou ultrapassagem que reside a consciência do acto criativo. Tanto em teatro como em Dramaterapia é esta escolha que precipita o “salto”.

Pitruzella (2004) sublinha que é na intersecção entre teatro e Dramaterapia que reside uma das vias mais profícuas de teatro dos indivíduos e dos grupos. Assume-se que, através

da Dramaterapia, se criam os espaços necessários à transformação dos laços entre o indivíduo e o social e se promove a abertura a uma nova etapa de vida. A Associação de Dramaterapeutas define-a do seguinte modo:

“A Dramaterapia é uma forma de terapia psicológica na qual todas as artes performativas são utilizadas dentro de uma relação terapêutica. Os Dramaterapeutas, simultaneamente artistas e clínicos, valem-se dos seus treinos em teatro/ drama e terapia para criar métodos que mobilizam os clientes na realização de mudanças psicológicas, emocionais e sociais. Em contexto dramático, a terapia atribui igual valor tanto ao corpo e à mente; histórias, mitos, textos de teatro, fantoches, máscaras e improvisação são exemplos da variedade de intervenções artísticas que o dramaterapeuta pode utilizar. Estas permitirão que o cliente explore experiências de vida difíceis e dolorosas através de uma abordagem indirecta.”

British Association of Dramatherapists

Presidem à Dramaterapia conceitos e teorias sobre o ritual e formas de arte ancestrais, o teatro, sobretudo dos finais do século XIX até aos nossos dias, e teorias acerca do processo criativo com repercussão no social. Existem ainda influências da Antropologia Social que informam as práticas relacionadas com o ritual e o simbolismo, da Sociologia, da Psiquiatria e da Psicologia que esclarecem acerca da relação entre inconsciente e consciente e das etapas de desenvolvimento do Homem, do ponto de vista do comportamento e da relação, entre outras. Áreas fundamentais à emergência da Dramaterapia são também as da Educação e da Pedagogia. Surge no encontro entre a psicologia e o drama, reconhecendo neste a capacidade de cura88, ou de melhoria e de reorganização da postura individual e social. Inspira-se também na Psicoterapia de Moreno.

A Dramaterapia, um dos ramos da Arte Terapia, utiliza processos, métodos e técnicas de dramatização com finalidades terapêuticas, destacando cada indivíduo dentro do grupo. Procura promover a consciência de si, através da criação de laços afectivos e sociais com esse mesmo grupo e a afirmação de papéis individuais, familiares, profissionais e sociais. O fortalecimento é estimulado pela expressão de sentimentos, pensamentos e ideias (Jennings, 2005).

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Existem, em Dramaterapia, tendências que a consideram uma forma de “cura” e outras para quem esse é um objectivo um tanto ambicioso e que preferem o termo “melhoria”. Anna Seymour afirma que “Não pretendemos curar. Por vezes, o melhor que um terapeuta pode fazer é ajudar o cliente a tornar a vida mais suportável.” (Seymour, 2009:35).

Chabukswar (2009) afirma que a Dramaterapia pode ser aplicada a uma enorme variedade de grupos de todos os níveis etários, em diferentes contextos institucionais e sociais, como hospitais, escolas, bairros, ou outros. Considera o drama como uma forma ancestral de conhecimento e auto-conhecimento, a ser desenvolvido num espaço seguro e “transicional”, onde o potencial terapêutico do teatro e da actividade dramática ajam como fonte de libertação. Ajuda assim a antecipar ambientes e vidas alternativas que são satisfatórias e valem a pena ser vividas. No centro desse movimento de libertação estão as emoções, as percepções, as acções e o jogo. Acrescenta a este propósito que o drama é um processo inseparável do crescimento do indivíduo, que é uma via eficaz na experimentação de situações novas e uma forma de aprendizagem de formas de utilização dessa experimentação:

“A Dramaterapia reconhece estas formas de crescimento através de metodologia planeada que unifica os estados aparentemente paradoxais de fazer e distanciamento. (…) Este espaço no tempo pertence-nos porque nós o percepcionámos; o autoconhecimento pertence-nos porque o criámos e o experienciámos e ultrapassámos o conhecimento de nós próprios.”

(Chabukswar, 2009: 346)

A Dramaterapia propõe-se encontrar vias de reflexão na sequência da actividade dramática. A reflexão positiva é uma fonte de inspiração para a emergência de uma óptica saudável, tanto das diversidades manifestas como dos potenciais latentes. É através da reflexão dos actos desenvolvidos durante a sessão que surge no sujeito uma configuração da sua forma de ser, uma auto-consciência do seu “aqui e agora” em conexão com o que se constitui mais relevante no seu quotidiano. Desta forma, o quotidiano surge dentro de uma perspectiva de mudança que agrega passado, presente e futuro, onde o invisível se torna manifesto.

Ao promover a totalidade do ser, nessa actividade que contém a mudança, sustém-se numa visão holística do Homem. Estabelecendo contacto com a pessoa no seu todo, numa conjugação entre acção, expressão criativa e verbalização vai provocar sucessivos insights89 (descoberta interior) a fim de que o indivíduo reconheça actos de significado e consiga identificar posturas pessoais que fortaleçam a sua identidade. Utiliza um processo de

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Em terapia, o insight é como uma “célula” que vive de forma latente no indivíduo, se auto-reproduz durante o processo e no devido momento se ejecta. É uma descoberta interior, da qual o indivíduo reconhece novos significados nas suas acções e interacções nos diferentes domínios da sua vida.

desconstrução momentânea para voltar a construir em harmonia com a natureza de quem entabulou esse processo.

A Dramaterapia apresenta-se como uma opção às terapias tradicionais já que, em vez de se basear fundamentalmente na análise dos transtornos psicóticos e neuróticos, concentra- se no potencial criativo e expressivo da pessoa para explorar alternativas e promover assim o bem-estar físico, mental, psicológico, afectivo e espiritual90; exploram-se assim conflitos, dilemas, formas de resolução de problemas e potenciais encobertos, dentro do conceito de

empowerment (Valente, 1991a; Kemmis e McTaggart, 2005).

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