• Nenhum resultado encontrado

Concordância Verbal e Classes Verbais nas LSs

Revertendo os verbos reversos e seguindo em frente: sobre concordância, auxiliares e classes verbais em línguas de sinais

2. Concordância Verbal e Classes Verbais nas LSs

2.1 Concordância sintática vs. concordância temática

Há uma discussão clássica na literatura das línguas de sinais sobre o status da concor- dância, nesse tipo de língua. A realização morfológica da concordância é compreen- dida como o movimento entre dois pontos associados com os argumentos de certos ver- bos. Pesquisadores como Kegl (1985), Pad- den (1983/1988), Janis (1992, 1995), Fischer (1996) e Mathur (2000) apresentaram dife- rentes análises identificando a concordân- cia como algo determinado por motivações sintáticas e/ou semânticas e concedendo um status distinto à concordância sintática e es- pacial. Por um lado, a concordância sintática (e/ou semântica) é interpretada como uma relação gramatical estabelecida com o sujeito

e/ou com os argumentos objeto do predica- do (Fischer 1973) e é morfologicamente rea- lizado pelo movimento de trajetória e/ou de orientação3. Por outro lado, a concordância

espacial é uma relação locativa estabelecida com pontos no espaço de sinalização cor- respondentes às localizações. Quando esses pontos constituem o início e o fim de um movimento, eles são interpretados como ar- gumentos locativos do verbo de movimento (FONTE-ALVO). Entretanto, há discordân- cia sobre esta proposta. Kegl (1985), por exemplo, observou que verbos espaciais e de concordância podem concordar com a FON- TE-ALVO, uma linha de análise desenvolvida no trabalho de Meir (1998, 2002).

A classificação verbal mais comum da Língua de Sinais Americana [American Sign Language – ASL] segue o agrupamento tri- partite de Padden (1983/1988, modificada em 1990: 119): (1) verbos simples que não flexionam em número e pessoa e tampouco aceitam afixos locativos; (2) verbos de con- cordância que flexionam em pessoa e núme- ro e não aceitam afixos locativos; e, (3) ver- bos espaciais que não flexionam em número, pessoa ou aspecto, mas aceitam afixos loca- tivos. Observe-se que Padden diferenciou entre flexão e afixação com verbos espaciais e de concordância, respectivamente (concor- dância sintática e morfológica).

Segundo Aronoff, Meir e Sandler (2005), concordância sintática consiste em copiar ín- dices referenciais livremente sob condições sintáticas específicas (envolvendo a verifica- ção de características). Concordância mor- fológica nas LSs corresponderia à realização manifesta daqueles índices sintáticos. Na re-

3 Para fins de simplicidade, neste artigo tratamos a questão da orientação (apresentando-se nos termos de Meir)

Revertendo os verbos reversos e seguindo em frente

Questões T

eóricas das P

esquisas em Línguas de Sinais

 lação de concordância em geral, há um con-

trolador e um alvo da concordância. O pri- meiro é o nominal do qual o index é copia- do, enquanto o segundo é o elemento sobre o qual o indicador é copiado. Geralmente, o verbo leva consigo um marcador que refle- te características morfológicas específicas do controlador do sujeito. A especificidade nas línguas de sinais é que a concordância é ex- pressa diretamente através de índices refe- renciais, isto é, através da cópia dos loci re- ferenciais (R-loci) nos espaços morfológicos correspondentes do verbo de concordância. Arnoff, Meir e Sandler analisam o caso espe- cífico da concordância morfológica nos ver- bos da língua de sinais como tendo dois espa- ços de localização abertos que determinarão a TRAJETÓRIA do sinal à la Meir (1998). Para verbos de concordância, existe a concordân- cia com os argumentos gramaticais. Para ver- bos espaciais, há localizações em que a traje- tória do verbo é uma representação direta da trajetória do objeto de movimento. Assim, no sentido proposto por Meir (1998), a direção da trajetória com os verbos de concordân- cia é determinada por papéis temáticos dos argumentos (argumentos FONTE-ALVO), enquanto a orientação das mãos é determi- nada pelo papel sintático dos argumentos do objeto. Em relação à interpretação semântica envolvida, os verbos de concordância deno- tam TRANSFERÊNCIA e os verbos espaciais denotam MOVIMENTO. Nessa perspectiva, a semântica do verbo é o que determina as classes verbais.

A terminologia adotada para as classes verbais em ASL não é universalmente aceita. Alguns pesquisadores tais como Loew (1984), Lillo-Martin (1986) e Emmorey (1991) se ali- nham a Padden em sua classificação e uso do termo ‘verbos de concordância’. Outros, en- tretanto, como Supalla (1990), chamaram es-

ses verbos de ‘verbos de movimento’. Fischer (1973), Fischer & Gough (1978), e Baker & Cokely (1980) os chamam de ‘verbos direcio- nais’. Padden (1983), inicialmente, denomi- nou esses verbos ‘verbos de flexão’, mas após Padden (1990), ela adotou o termo ‘verbos de concordância’, reconhecendo que verbos de flexão incluem verbos espaciais e de con- cordância, assim como qualquer outro tipo de flexão que pudesse ser vinculada a qual- quer verbo. Janis (1995) utiliza a terminolo- gia ‘concordância locativa’ e ‘concordância não locativa’ para se referir à flexão locativa e flexão de concordância, respectivamente. O motivo da proliferação dos termos está pro- vavelmente relacionado à forma que a flexão vinculada ao verbo toma e também ao status da concordância propriamente dita. Pare- cem, também, existir verbos opacos (fuzzy) que não se encaixam, rigorosamente, na clas- sificação tripartite, visto que suas proprieda- des temáticas e gramaticais podem ser inclu- ídas em mais de uma classe. Kegl (1985:35) observa que a necessidade de invocar noções temáticas tais como agente, paciente, fonte e alvo “surge do fato que em línguas como o inglês não há correlação fixa entre papéis se- mânticos/temáticos e relações gramaticais”. Esse caveat é importante, na medida em que também se aplica às línguas de sinais.

2.2 Concordância temática: incorporando verbos reversos (backward verbs) no

cenário

O status atribuído à concordância por Meir (1998, 2002) está restrito às relações semân- ticas estabelecidas pela TRAJETÓRIA. Meir (1998) mostra que a direcionalidade deve ser isolada, devido à existência dos verbos rever- sos. Verbos reversos são predicados de con-

Ronice Müller de Quadros e Josep Quer

Questões T

eóricas das P

esquisas em Línguas de Sinais



cordância em que a posição inicial do sinal é a localização do objeto e a posição final é aquela do sujeito, diferentemente de outros verbos de concordância. Na análise de Meir, “a direção do movimento de trajetória marca as relações semânticas (ou temáticas) entre os argumentos do verbo enquanto a orientação das mãos marca as relações sintáticas entre os argumentos do verbo” (Meir 1998). Meir (1998) argumenta que a direcionalidade não é o elemento fonológico relevante para carac- terizar relações gramaticais de argumentos, mas, sim, a orientação das mãos. A orienta- ção das mãos é o direcionamento para o qual a palma e/ou as pontas dos dedos são orien- tadas nos verbos de concordância, o que é de- terminado pelo locus referencial atribuído ao argumento-objeto do verbo.

Os verbos reversos são os exemplos mais apropriados para dar suporte ao argumen- to de Meir. Nesses predicados, a direção do movimento não se inicia na posição associa- da ao sujeito gramatical e termina na posi- ção do objeto, mas, sim, de maneira inversa. Entretanto, a orientação das mãos na direção da localização do objeto é preservada. Por- tanto, Meir propõe a existência da marca- ção dupla, isto é, concordância da trajetória temática (FONTE-ALVO) e concordância sintática (orientação da mão em direção ao objeto). Alguns de seus verbos apresentados como exemplos desse padrão reverso em ASL e ISL (Língua Israelense de Sinais) são COPY, INVITE, TAKE ou TAKE ADVANTAGE OF [COPIAR, CONVIDAR, LEVAR ou BENE- FICIAR-SE DE].

Sua análise difere essencialmente do re- lato de Padden sobre reversibilidade, o que oferece apenas uma abordagem sintática, isto é, verbos reversos apresentam concordância reversa com o sujeito e o objeto. Um forte argumento oferecido por Padden em favor

dessa abordagem é a omissão do marcador de concordância na ASL, por meio do que a marcação do sujeito pode ser opcionalmente omitida, nos verbos regulares e reversos. Isso não seria de se esperar em uma abordagem temática como a de Meir, uma vez que de- veríamos especificar que em verbos regulares de concordância, o argumento opcionalmen- te omitido é aquele que carrega a FONTE, enquanto a concordância ausente nos verbos reversos é aquela associada ao argumento ALVO.

2.3 Concordância Sintática vs. Concordância Locativa

Padden oferece três testes para diferenciar a natureza sintática e locativa da concordância, em casos onde a similaridade superficial dos morfemas envolvidos pode levar a uma iden- tificação dos dois tipos. Ela distingue entre ‘concordância de pessoa’, na qual morfemas de pessoa gramatical se diferenciam entre primeira e não-primeira pessoa gramatical, e ‘localização espacial’, na qual o que é men- cionado é qualquer ponto físico sobre ou em volta do corpo do sinalizador.

Primeiramente, com verbos espaciais, a interpretação da concordância é locativa, uma vez que ela é interpretada como movimento entre localização específica no espaço (1a); a concordância sintática implica a interpreta- ção da pessoa dos vetores envolvidos no mo- vimento, isto é, os pontos iniciais e finais do movimento correspondem às posições asso- ciadas aos argumentos sujeito e objeto (1b).

(1) a. a-CARRY-BY-HAND-b [a-LEVAR- COM A-MÃO-b]

‘I carry it from here to there.’ [Eu o levo daqui para lá]

Revertendo os verbos reversos e seguindo em frente

Questões T

eóricas das P

esquisas em Línguas de Sinais

 b. 1-GIVE-2 [1-DAR-2]

‘I give you.’ [Eu lhe dou]

Padden alega que no primeiro exem- plo, há concordância com o sujeito; isto é, a primeira pessoa está marcada através da posição inicial do sinal, que envolve uma lo- calização próxima ao corpo do sinalizador. No segundo exemplo, o ponto inicial está também perto do corpo do sinalizador. En- tretanto, no segundo caso há um morfema locativo, em vez de concordância de pessoa gramatical com a primeira pessoa, embora isso possa parecer concordância de pessoa. Ela mostra essa diferença listando as possí- veis variações em (1a): I carry it from here (near my chin) to here [Eu o levo daqui (meu queixo) para cá], I carry it from here (near my chest) to here [Eu o levo daqui (perto do peito) pra cá], I carry it from here (near of the lower part of my body) to here [Eu o levo daqui (perto da parte inferior do meu corpo) para cá]. Entretanto, não há va- riações significativas para (1b), isto é, (1b) será sempre entendido como tendo a pri- meira pessoa como sujeito da sentença, sem mudanças na localização do sinal.

Segundo, a marcação distributi- va (também conhecida como marcação exaustiva (exhaustive marking)) só pode aparecer com concordância de pessoa (2a). Uma forma similar ocorrendo com um verbo espacial produz uma interpreta- ção locativa (2b).

(2) a. 1-GIVE-3dist [1-DAR-3ista]

‘I give it to (each of) them.’ [Eu o dou para (cada um) (d)eles]

b. PUT-a PUT-b PUT-c [COLOCAR-a COLOCAR-b COLOCAR-c]

‘I put them there, there and there.’ [Eu os coloco ali, lá e acolá]

Terceiro, a marcação recíproca apenas ocorre com verbos de concordância (3a). Formas análogas com verbos espaciais rece- bem uma interpretação locativa (3b).

(3) a. a-GIVE-b/b-GIVE-a [a-DAR-b/b- DAR-a]

‘They gave something to each other.’ [Eles deram algo um para o outro] b. a-PUT-b/b-PUT-a [a.COLOCAR-b/

b-COLOCAR-b]

‘I put one in each other’s place.’ [Eu coloco um no lugar do outro]

Rathmann & Mathur (no prelo) ofere- cem alguns testes sintáticos adicionais que, argumenta-se, provocam a separação entre verbos espaciais e de concordância, o que corresponde à distinção entre concordância locativa e sintática.

Primeiramente, nenhuma FONTE XP sur- ge com verbos de concordância (4a), enquanto isso é possível com verbos espaciais (4b).

(4) a. *PAPER JOHN-i BILL-j MARY-k j-GIVE-k [*JORNAL JOHN-i BILL- j MARY-k j-DAR-k]

‘John gave paper from Bill to Mary.’ [John passou o jornal de Bill para a Mary]

b. PAPER JOHN-i HOME-a SCHOOL-b a-BRING-b [JORNAL JOHN-i CASA-a ESCOLA-b a- TRAZER-b]

‘John brought paper from home to school.’[John trouxe jornal de casa para a escola]

Segundo, os verbos de concordância não podem modificar a trajetória, ao passo que os verbos espaciais podem. De acordo com esses autores, interromper o movimento pela me-

Ronice Müller de Quadros e Josep Quer

Questões T

eóricas das P

esquisas em Línguas de Sinais

0

tade com verbos de concordância produz um resultado agramatical (5a), ao passo que a mesma mudança em uma trajetória espacial simplesmente apresenta uma interpretação diferente (5b).

(5) a. *PAPER JOHN-i BILL-j MARY-k j- GIVE-k (halfway) [*JORNAL JOHN-i BILL-j MARY-k j-DAR-k (inter- rompendo o movimento)]

‘John gave paper halfway to Mary.’ [John passou o jornal para Mary in- terrompendo o movimento]

b. PAPER JOHN-i HOME-a SCHOOL-b a-BRING-b (halfway) [JORNAL JOHN-i CASA-a ESCOLA-b a-TRAZER- b (interrompendo o movimento)] ‘John brought paper halfway to school.’ [John trouxe o jornal para a escola (interrompendo o movimento]

Terceiro, o argumento portando o papel temático de ALVO nos verbos de concordân- cia não pode ser questionado por ONDE (6a), ao passo que os verbos espaciais podem.

(6) a. WHO/*WHERE JOHN-i i-GIVE

PAPER [QUEM/*ONDE JOHN-

i i-PASSAR JORNAL]

‘Quem/*para onde o John deu o jornal?’ b. *WHO/WHERE JOHN-i BRING-

a PAPER [*QUEM/ONDE JOHN-i TRAZER-a JORNAL]

‘*Who/where did John bring paper to?’ [*Para quem/onde o John passou o jornal?]

Posteriormente, retomaremos alguns desses argumentos empíricos, ora para questionar sua validade, ora para utilizá- los em defesa da proposta apresentada nes- te artigo.

Rathmann e Mathur (no prelo) analisam a concordância verbal nas línguas de sinais como resultado de uma inovação lingüística que permite a interação das propriedades lin- güísticas dos verbos de concordância com o gesto: se um verbo seleciona dois argumen- tos animados, ele pode participar da concor- dância com o sujeito e o objeto, em traços de pessoa e número. É importante observar que essa posição reduz a concordância verbal à concordância com argumentos animados, excluindo, assim, a concordância de pessoa com argumentos inanimados. Como vere- mos abaixo, esta proposta enfrenta o desafio empírico de esclarecer os chamados verbos de concordância que concordam com um ar- gumento inanimado. Esse aspecto se tornará essencial na elaboração de nossa proposta.

Nesse sentido, Janis (1992, 1995) adota uma perspectiva significativamen- te diferente, no sentido que descarta classes verbais e estabelece que a concordância, nas LSs, é, na verdade, uma concordância de caso controlada pelo caso que o argumento dos verbos traz consigo e por seus papéis temá- ticos. A concordância se dá ou com o caso locativo ou com o caso direto (não-locativo, concordância gramatical), o primeiro tendo destaque sobre o segundo, no ranqueamento dos traços de controlador. Janis (1992: 192) observa que a análise geralmente aceita da distribuição verbal da ASL não pode prever com que o verbo irá concordar, tampouco que forma de concordância um verbo terá em todas as situações. A partir dessa pers- pectiva, ela considera o caso de verbos como COPY [copiar] ou ANALYZE [analisar] na ASL e sugere que a concordância apresen- tada com objetos animados e inanimados se correlaciona com a concordância do caso direto e locativo e que não é necessário pos- tular duas entradas lexicais diferentes para as

Revertendo os verbos reversos e seguindo em frente

Questões T

eóricas das P

esquisas em Línguas de Sinais

1

Outline

Documentos relacionados