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103 e bem dirigida Suas palavras denunciando a “Igreja Popular” como “um grave

desvio da vontade e da salvação de Jesus Cristo” foram pratica mente abafadas, do princípio ao fim, por gritos e miados altos e contínuos.

Os líderes sandinistas tinham motivos para uma profunda satisfação: ali, pelo menos, aquele papa não conseguiria falar ao povo passando por cima deles; não teria voz na decisão do destino da Nicarágua.

João Paulo encerrou o discurso de chegada que preparara, com a voz indicando sofrimento e raiva. Passou pela linha de recepção, trocan do apertos de mão maquinais com membros da Junta e com comandan tes do Diretório Nacional. Certos membros do gabinete brilharam pela ausência. O ministro d as Relações Exteriores, o padre Maryknoll Miguel D’Escoto, achara mais conveniente estar em Nova Déli. O embaixador junto à OEA, padre Edgar Parrales, e o Delegado de Estado, padre jesuí ta Alvaro Arguello, estavam cada um em sua casa vendo os insultos pel a televisão. O padre jesuíta Fernando Cardenal também estava ausente. Seu irmão, Ernesto Cardenal, era o único sacerdote a nível de governo pres e n t e , uma figura de óculos com trajes — camisa branca de algodão simples, folgadas calças azuis e boina preta — que estavam constrangedoramente em desacordo com os seus brilhantes sapatos pretos.

De todos aqueles reunidos para receberem o santo padre naquele país predominantemente católico, Ernesto Cardenal foi o único que tocou o chão com um dos joelhos quando o p apa se deteve ostensivamente diante dele. Cardenal tirou a boina e estendeu a mão para segurar a do papa e beijar -lhe o anel. Mas João Paulo não estendeu sua mão. Em vez disso, sacudiu um dedo admoestador para Ernesto.

“Você tem que regularizar sua situação!”, disse o pontífice em voz clara, e depois repetiu as palavras para dar -lhes ênfase. “Você tem que regularizar sua situação!”

A única resposta de Cardenal foi manter firme o olhar, sorrindo pa ra Sua Santidade.

João Paulo percorreu o restante da fila de recepção e partiu para a primeira parte do itinerário que planejara na Nicarágua, uma visita à ci dade de León, a cerca de 64 quilômetros a noroeste de Manágua.

A recepção no Aeroporto Sandino foi apenas uma fraca e esganiçada abertura da sinfonia de humi lhação que tinha sido orquestrada para João Paulo, a ser executada perante o mundo no clímax de sua visita pa pal. A missa campal, que era o ponto principal da visita de João Paulo, seria celebrada ao anoitecer daquele dia, na espaçosa praça 19 de Julho, b atizada em homenagem ao dia de julho em que a ditadura de Somoza foi esmagada e a Junta marxista dos sandinistas havia assumido o poder.

O sol poente banhava com seus raios vermelho -dourados uma cena ines- quecível, com João Paulo entrando na praça vestindo seus trajes pontificais, a mitra papal na cabeça, o báculo papal ereto na mão.

A multidão que se apertava na praça, 600.000 pessoas pelas estima tivas oficiais, estava toda dividida e comprimida com perfeição em blo cos

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preparados com antecedência. Um dos lados da praça apinhada exi bia um enorme pano de fundo formado por cartazes revolucionários re tratando os heróis da revolução sandinista. De frente para os cartazes, do outro lado da praça, fora construída uma comprida plataforma de ma deira com um gradil. Um altar — uma mesa simples, comprida, coberta com tecido de linho para a ocasião — tinha sido colocado sobre a plata forma. De ambos os lados da plataforma, de frente para a multidão, fi cavam dois palanques oficiais, onde a Junta, formada por três elementos, e o Diretório Nacional, formado por nove, esperavam, todos os doze ves tindo uniformes de campanha verde -oliva do exército.

Nos lugares mais próximos da plataforma improvisada e dos palan ques que a flanqueavam, a Junta havia instalado blocos esp eciais de simpatizantes, aos quais foram fornecidos megafones e um microfone. Por toda parte — no alto de edifícios que cercavam a praça, no alto dos car tazes, nas mãos das multidões, em torno da plataforma e do próprio al tar — havia bandeiras sandinistas com as cores vermelho e preto. Aqui e ali, surgia uma bandeira do Vaticano, em amarelo e branco, e pouquís simas eram as bandeiras nicaraguenses em azul e branco.

Em tom de provocação, Ortega e seus pares ordenaram que se pen durasse, como pano de fundo do altar, um mural retratando em enormes proporções os rostos de Carlos Fonseca Amador, herói -mártir da revolução sandinista, e Augusto César Sandino, o homem em cujo nome os san dinistas tinham feito a sua revolução.

Não havia crucifixo sobre o altar. A quela imemorial prática católica tinha sido proibida pelos jovens governantes da Nicarágua. Em seu lu gar, fora estendido outro comprido estandarte, com letras do tamanho de um homem que diziam: “ João Paulo está aqui. Graças a Deus e à Revolução/”

Como sempre acontece quando se reúne tal massa de gente, nunca houve um momento de silêncio. As massas, a menos que sejam silencia das por alguma coisa extraordinária — um orador fascinante, um espetá culo deslumbrante — emitem uma variedade de sons, acentuados por explosões de gritos de aplauso coordenados com perfeição e por ocasio nais momentos de canto. João Paulo começou sua missa com tranquilidade; ele estava acostumado com o comportamento das multidões.

Quando chegou o momento de fazer a homilia que havia preparado — um vigoroso ataque à Igreja Popular — ele ficou surpreso pelo fato de que até mesmo o microfone que tinha sido instalado para ele não con seguia sobrepujar a bem ensaiada e belamente coordenada cacofonia que agora vinha da multidão, uma litania e nsurdecedora de ritmados gritos de guerra revolucionários.

Na verdade, as claques começaram antes mesmo da homilia. Quan do João Paulo se esforçou para fazer com que sua voz ressoasse acima dos seus concorrentes, a litania das multidões se tornou tão estri dente quanto um trovão e tão regular quanto uma batida de coração:

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