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151 — Eu preferiria que você a conseguisse hoje — respondeu Iñigo —, mas

faça o que achar melhor.

A correspondência foi despachada a tempo.

Pouco depois da alvorada, na sexta -feira, 31 de julho, Iñigo gritou rezando. Era frequente ele rezar em voz alta enquanto dormia, porém, e por isso ninguém ligou.

Quando o enfermeiro destacado para tomar conta de Iñigo verificou suas condições ao amanhecer, viu imediatamente que o doente estava em sua agonia final. Polanco, chorando, correu para obter a bênção papal. Ele a levou de volta tarde demais. Nem a bênção papal nem o Óleo Sa grado da Extrema- Unção seriam de Iñigo enquanto ele ainda estivesse vi vo e consciente.

Sua partida para longe de seus companheiros e do mundo foi teste - munhada apenas por dois jesuítas. O retraimento da pessoa que era Iñigo estava completo. Quando o mundo todo passasse a saber de sua existên cia, seria como Inácio de Loyola. Nove entre dez pessoas comuns, e três entre cinco jesuítas não iriam nem mesmo saber o seu verdadeiro nome.

Após a sua morte naquela sexta -feira, seus companheiros que fica ram tentaram outra vez — várias vezes, na verdade — mandar fazer um retrato de Iñigo. Chamaram o famoso artista Jacopino del Conte, um ex - penitente de Iñigo. Um membro desconhecido da comunidade mandou fazer uma máscara mortuária; e com base nessa máscara Alonzo Sánchez Coello, pintor da corte do rei Filipe II da Espanha, tentou reproduzir um retrato de Iñigo. Mas nem del Conte nem Coello tiveram sucesso onde Moroni fracassara anos antes. Todos aqueles que tinham conhecido Iñigo intimamente durante tanto tempo examinavam as tentativas. “Não”, diziam eles, “este não é o nosso pai.” Juravam que nenhum daqueles dois trabalhos nem a própria máscara mortuária eram remotamente parecidos com Iñigo em vida; que nenhum deles captara o seu ar tenso de ener gia incansável e de infinita determinação. Sentimos falta, reclamavam eles, da paz e da calma que cobriam suas feições aristocráticas.

Os retratos tradicionais de Iñigo são, segundo aqueles que o conhe ceram, “fictícios”. Foi como se o desejo que ele tinha de ser o irreconhe cível, o despersonalizado — se possível, o desconhecido — arquiteto de sua Companhia fosse atendido por um afetuoso Senhor Jesus que dá à humildade e ao recato em suas criaturas um valor maior do que a qual quer outra realização humana.

Na noite de sábado, 1° de agosto, os restos mortais de Iñigo foram enterrados na pequena capela de Santa Maria della Strada, em frente à casa que ele ocupara nos últimos dez esseis anos de vida. Em 1587, a capela foi substituída pela famosa igreja jesuítica do Gesù, e seus despojos foram ali enterrados. Mal haviam se passado setenta anos de sua morte, ele foi canonizado como santo pelo papa Gregório XV.

O preço do enorme sucesso de Iñigo foi alto apenas em termos hu manos. Já antes de sua morte em 1556, os jesuítas só em Roma chegavam a cerca de 150; a Ordem possuía mais de cem casas em doze regiões dife rentes

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do mundo. Iñigo havia fundado 35 faculdades para a educação su perior da juventude. Os jesuítas trabalhavam em lugares tão distantes um do outro quanto o Japão e o Brasil, estavam penetrando em países tão opacos à mentalidade do século XVI quanto a Etiópia, e eram aceitos em todas as principais assembleias da Igreja como vozes autênticas da dou trina e da autoridade do papa católico romano.

O futuro de sua Sociedade estava tão garantido quanto o de qual quer outra instituição da Igreja existente. Iñigo tivera capacidade de escolher o homem certo para o trabalho certo na hora certa e enviá-lo para o lugar certo. Mandou um holandês fleumático, Pie ter de Houndt, mais conhecido pela forma latina de seu nome, Peter Canisius, para a Alema nha em 1550, com dois únicos companheiros. Quando Canisius morreu em 1597, deixou atrás de si 1.110 jesuítas naquela área e uma cadeia de colégios jesuítas na Áustria, Alemanha e Hungria, e havia recuperado pro víncias inteiras do protestantismo. Imperadores, reis e governos que ain da estavam por nascer tiveram que contender com o que Canisi us forjou décadas e séculos antes de eles entrarem em cena.

Fundamental e intimamente, entretanto, foi Iñigo, lá na sua pequena casa de pedra em Roma, a causa disso, como foi do sucesso singular da Sociedade de Jesus no mundo inteiro e pelos séculos afora .

Sejam quais forem as realizações dos jesuítas, e sejam quais forem as mudanças e adaptações que a Sociedade de Jesus decidir fazer na pas sagem dos séculos e na sucessão de novas eras do desenvolvimento huma no, será possível discernir o real valor dessa s realizações, mudanças e adaptações usando -se uma norma, e apenas uma norma. Esta é a confor midade dos jesuítas — como Ordem e como indivíduos — ao papalismo original de Iñigo expresso naquela

Fórmula do Instituto.

No dia em que houver guerra entre o pap ado e a Ordem dos Jesuí tas, nesse dia pode-se ter a certeza de que os membros da Sociedade re nunciaram ao modelo peculiarmente inaciano e tomaram um caminho que Inácio e a Igreja nunca determinaram para os jesuítas.

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7. O MODELO INACIANO

Q

uando Iñigo de Loyola recebeu seu mandato de Paulo III e se instalou em sua casa romana com os primeiros companheiros, o mundo que ele conhecia era estarrecedoramente parecido com o nosso em muitos pontos. Se qualquer um de nós, hoje, fosse andar pelas mesmas ruas pelas quais ele andou e conversar com as pessoas que ele conhecia, é provável que fosse sentir -se bem à vontade na volátil mistura de mentalidade desbravadora e temor de guerra e de extermínio. Mas a solução de Iñigo para os problemas que o mundo apresentava já estava clara em sua mente; e essa solução era estarrecedoramente diferente de qualquer outra já apresentada, e de qualquer outra que jesuítas imaginaram e implementaram nos últimos vinte anos deste século.

É precisamente nessa diferença que se pode ver co m maior nitidez o lendário sucesso do jesuitismo inaciano — o modelo inaciano da Sociedade e de cada um de seus membros.

Se fosse possível um moderno repórter apresentar um daqueles do - cumentários in loco sobre o mundo que Iñigo enfrentou entre 1521 e 1556 , iria levar suas câmeras de televisão e seus microfones sobre rodinhas a qualquer número de centros mundiais e levaria em consideração toda uma série de revoluções estonteantes. Na Espanha, França, Holanda, Bélgica, Inglaterra, Alemanha e Itália, ele iria gravar entrevistas in loco com o Novo Homem de olhos brilhantes, rebelde, onicurioso, de tendências ro mânticas, da Renascença europeia, para o qual todas as questões esta vam em aberto. Em toda parte, o repórter iria registrar espanto e expec tativa. Acima de tudo, iria registrar o senso empreendedor que os homens tinham de realizações e descobertas totalmente novas que dominavam e, às vezes, confundiam a geração à qual Iñigo pertencia.

“O que é que está acontecendo?” De uma forma ou outra, esta seria a pergunta que o nosso repórter faria em cada lugar aonde fosse. E não é difícil imaginar as respostas que iria receber.

Na Alcalá, na Salamanca e na Barcelona da Espanha de Iñigo, ele não iria ouvir falar sobre múltiplas sondagens de Vênus, é claro, ou de

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planos para operações de mineração na lua ou avanços científicos na microbiologia e na genética. Mas em resposta à sua pergunta “O que é que está acontecendo?”, iria descobrir o nosso mesmo senso de descoberta e expectativa de grandes mudanças: “Ora, você não soube? Descobrimos um mundo estranho além de nossos mares ocidentais! Está cheio de re cursos que irão mudar nossas vidas para sempre, e de criaturas que não sabíamos que existiam. Ora, é a criação da noite para o dia, de todo um novo império! É de deix ar a gente louca!”

Em Paris, onde Iñigo havia estudado, e nas faculdades teológicas em outras partes da França, Holanda, Inglaterra e Bélgica, a conversa não seria sobre a Teologia da Libertação, como é nos nossos dias, ou sobre os direitos das mulheres na Igreja, ou sobre o Povo de Deus co mo a última fonte da eterna salvação e a única de confiança. Mas have ria equivalentes religiosos e teológicos muito próximos: “Ora, você não soube? Um monge alemão, Martinho Lutero, e o rei inglês, Henrique VIII, desafi aram Roma! Eles dizem que querem nos libertar da superstição papista, livrar nossas mentes da escravidão a falsas doutrinas fabrica das pela mente alatinada. Dizem que iremos converter o mundo, agora que sabemos que a Igreja e o papa não têm mandato de Cristo e nenhuma doutrina a nos ensinar exceto o que está na Bíblia. É de deixar a gente louca!”

Da mesma forma, na Gênova e na Veneza da época de Iñigo, “O que está acontecendo?” não provocaria comentários sobre mísseis sovié ticos instalados na Europa Oriental, ameaçando a destruição nuclear do Ocidente, ou sobre a OTAN como a defesa “do Ocidente” contra o “Les te”. Mas o temor geopolítico não era tão diferente assim: “Ora! Você não ouviu falar dos turcos? Todo o nosso mundo cristão poderia ser ex tinto pelo sultão otomano e seus turcos de Constantinopla que odeia os cristãos. O que está acontecendo é nada menos do que a guerra pela sobrevivência da cristandade — a vida ou morte do coração cristão. É de deixar a gente louca!”

Se o nosso repórter frequentasse, como fizera Iñigo, os salões e as casas dos muito ricos — os aristocratas, o clero mais graduado e as clas ses privilegiadas — iríamos ouvir o que Iñigo tinha ouvido. Ele iria es barrar com toda a força no individualismo desenfreado estimulado, até se t ornar uma chama brilhante, pela redescoberta da literatura e da civili zação greco-romana. Iria reconhecer e concordar com a moda renascen tista de “humanizar” todas as coisas. E como um homem do século XX, iria sentir -se perfeitamente à vontade.

Frases como “crescimento criativo para a integração” e “Cristo, o Revolucionário Combatente pela Liberdade” não eram ditas naquela épo ca. E não havia discussões sobre os benefícios sociais do aborto e da eu tanásia legalizados.

Mas falava-se muito sobre um Jesus transformado à la Grecque num belo Apolo ou num sábio Platão. Sobre Deus, o Pai, sendo chamado de Pai Zeus; e o Céu, de Campos Elíseos; e os anjos e santos, de ninfas e

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