• Nenhum resultado encontrado

177 superior é um tolo e que você sabe o que ele deveria ter mandado fazer, mas,

por obediência a Cristo, você decide que irá fazer de boa vontade

o que ele diz. O detalhe, aqui, é que você está tão preocupado em agradar a Cristo, que sua obediência se transforma de relutante em solícita. Com efeito, você decide querer o mesmo que o seu superior. “Nesse estágio”, comenta Inácio, “já existe alegria na obediência.”

Ainda existe mais um, o mais alto grau de obediência. Você não ape nas faz o que lhe mandam como não demonstra qualquer oposição decla rada. Nem meramente decide querer o que o seu superior quer, faz de bom grado o que ele exige. Agora, você concorda mentalmente com o seu superior; você tem a obediência do intelecto. Incondicionalmente, pen sa como o seu superior. Submete o seu discernimento ao do seu superior “na medida em que só a vontade abjurada pode controlar o intelecto”. Esta mais elevada forma é o que Inácio chama de “obediência cega (...) a renúncia voluntária ao discernimento privado”.

Os graus de obediência, é claro, estão dispostos segundo o grau em que a vontade do indivíduo está engajada nessa obediência — segundo, em outras palavras, a “disposição” do indivíduo. Inácio escreveu em pou cas linhas o seu ideal do jesuíta obediente:

De modo geral, não devo desejar pertencer a mim mes mo, mas ao meu criador e ao seu representante. Devo deixar -me ser conduzido e deslocado como um pedaço de cera se deixa amassar. Devo ser co mo o cadáver de um homem, sem vontade ou discernimento; como um pequeno crucifixo que se deixa ser deslocado sem dificuldade de um lugar para outro; como um bastão nas mãos de um velho, para ser colocado onde ele quiser e onde ele me possa usar da melhor ma neira possível. Assim, devo estar sempre à mão, a fim de que a Or dem possa me usar e me aplicar da maneira que lhe parecer satisfató ria (...)

A frase “como o cadáver de um homem”, em latim perinde ac cadaver, provocou o termo “obediência cadavérica”; e, interpretada de maneira errada, foi usada para ridicularizar, até mesmo difamar a obediência jesuítica. É preciso ter discernimento para compreender o que Inácio quis dizer; e o que ele quis dizer era, em si, revolucionário.

Até a sua época, o voto de obediência nas ordens religiosas (bem co mo os outros dois votos, de pobreza e castidade) visavam ajudar os mem bros daquelas ordens a atingirem a felicidade pessoal e, no final, a salvação eterna.

A obediência jesuítica tinha por finalidade primordial formar um cor po firmemente unido e disciplinadíssimo com homens amplamente sepa rados pelo mundo inteiro; homens que eram dirigidos por planos e estratégias feitos por grupos coordenados e interligados de superiores; ho mens cujo trabalho visava primordialmente ao mundo à sua volta.

A passividade e a característica de semelhança com um cadáver des sa obediência, a maleabilidade da cera, a adaptabilidade do bastão do ve lho,

178

e impotência do pequeno crucifixo — tudo isso eram imagens que se referiam a apenas um processo: a escolha do objetivo e o meio de atin gir esse objetivo.

Como os jesuítas provaram acima de qualquer sofisma, a obediên cia inaciana nunca afetou a riqueza de recursos, o ativismo perene, a engenhosidade, o uso extensivo de realizações e dons pessoais por membros da Ordem.

Realmente, a obediência jesuítica, ao longo do tempo, tornou -se uma característica quase lendária dos membros da Ordem. Seus amigos e ad - miradores a louvavam. Inimigos a parodiavam, reclamando que os jesuítas eram obrigados, pelo voto de obediência, a fazer qualquer coisa que

o superior mandasse — assassinar um líder, dinamitar um edifício, rou bar, corromper, mentir, cometer suicídio. Mas isso é pura calúnia. Iná cio exclui de forma explícita da obediência qualquer coisa que cheirasse remotamente a pecado. Assim também faz a lei geral da moralidade ca tólica.

Esse aparentemente gritante contraste entre a obediência “cadavérica” de homens arrumados em camadas piramidais de um lado e, do ou tro, a riqueza de recursos, a engenhosidade e outros dons individuais tão evidentes em seu ativismo, sempre deixou intrigados os inimigos da So ciedade. Diziam eles que não havia nada para se ver. “Nada”, como re clamou desesperado o racionalista francês do século XIX que se dizia ateu, Edgar Quinet, “a não ser provinciais, reitores, examinadores, consultores, admonitores, procuradores, prefeitos de coisas espirituais, prefeitos de saúde, prefeitos da biblioteca, prefeitos do refeitório, criados e despenseiros.” Como é, então, que uma organização anódina dessas podia ser um inimigo tão temível para os inimigos de Roma, um ativo tão valioso para o papado?

Toda a estrutura piramidal erguida sobre a “obediência cadavérica” devia, concluía-se, ser um disfarce para uma elite letal e com sede de po der mas oculta, tramando por trás dessa fachada banal tirar as liberdades e os bens de todos os homens livres, ou para aquilo que um escritor pro testante chamou de “artes mágicas secretas pelas quais os jesuítas realizam coisas estranhas em determinados dias (...)”.

“Mostre-me, em meio a tudo isso, a alma cristã!”, reclamava Qui net. E embora Quinet e muitos iguais a ele ao longo dos séculos não con seguissem entender, o verdadeiro segredo dos jesuítas de Inácio era pre cisamente a alma cristã; o seu aprimoramento e purificação em cada mem bro da Ordem. Embora todos os regulamentos estivessem expostos com clareza por Inácio nas

Constituições e outros trabalhos seus, só quando se compreende esses

regulamentos à luz da dimensão divina e espiritual do modelo inaciano clássico é que se pode começar a compreender o jesuitismo: aquela combinação peculiar de individualismo altamente desen volvido em cada membro, coordenado dentro da estrutura da coesão da organização em torno dos super iores; coesão formada pela obediência jesuítica. A rígida disciplina íntima gerava a unidade interna. A liberdade

179

Outline

Documentos relacionados